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quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

CONTO: O PERU DE NATAL - Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

— Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...

— Meu filho, não fale assim...

— Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

— É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

— Eu que sirvo!

"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

— Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

— Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

CONTO: LILI E O MONSTRO - Leonardo Braziliense

Gente que vive só há muito por aí. É o que mais se vê, quando se olha a sério, sem fingir que a sombra do outro exclua a solidão, ou que isso tenha alguma coisa a ver com felicidade.
Uns assim andam por gosto. Outros também, como Lili.
Era uma vez Lili, portanto, que vivia só, faz de conta que o destino o quis.
Morava numa pequena casa de dois cômodos. Havia a sala-cozinha, apertada, onde Lili seguidamente batia-se de ficar roxa, em quinas, trambolhos, tranqueiras - suas pernas eram de cima a baixo esverdeadas. Havia mais o quarto-lavatório, menor, sem guarda-roupas por não caber, servindo-se a tanto sua mala embaixo da cama, e nem muito cheia.
Havia, sobretudo, os sons de Lili respirando, andando, abrindo o armário, a porta e às vezes falando para si própria.
Foi numa noite, já alta noite e chuvosa, que se deu início à história.
Precisamente, na sala-cozinha.
Começou com morte. Não a morte em si, na hora e testemunhada, mas apareceu o corpo de uma barata, seco, no chão. As pernas para cima, semi-encurvadas, como sempre morre humilhada a barata.
E Lili, que fazer? Varrer para fora não ia, tarde da noite e com chuva, o cadaverzinho seco, exclamativo. Deixava para o outro dia. Para ela não faria diferença, para a barata não faria diferença. Agora tinham isso em comum.
De manhã, não havia corpo de barata onde quer que se procurasse. Lili olhou por toda a casa - coisa não muito difícil, com franqueza. Mas fez uma busca, sim, por todos os dois cômodos, até dentro da mala.
Na dúvida, pensou primeiro que o inseto estivesse vivo. Mas pose de barata quando morre é inconfundível! Teria varrido o bicho e não lembrava? Seria novidade; uma das poucas não-decepções de si era a memória, infelizmente.
Sem nada mais a pesar, considerou o assunto por de menor importância. Suspirou e seguiu o dia, mais um dia, véspera de outro dia.
Não interessa dizer com exatidão quanto tempo, para dar relevância ao fato, posto que no realizar da vida de Lili, pouco e arrastado, qualquer coisa, pequena que fosse, valia a narrativa... Mas ia tempo, algum tempo, e passara-se o seguinte: Lili arrumava a cama e ouviu um remexe na sala-cozinha: estrebuchava um rato gordo, decerto comera o veneno deixado no biscoito-chamariz, embaixo da mesa, e morria por ali. Animal roliço e, via-se, guloso; de pernas tortas, tamanho o peso, um ratazão.
Lili cansada, pronta a se deitar, teve preguiça: "Amanhã recolho o coitado e ponho no lixo, amanhã, só amanhã". Sequer teve nojo, até o nojo deixava para amanhã.
Madrugadinha, ela se levantava para trabalhar. Como sempre, saiu da cama para lavar o rosto e tirou remela ainda se acordando. Quando o Sol apontasse, já contaria meio caminho da cidade. Era assim de segunda a sábado. Às vezes, cochilava no ônibus; às vezes, a cabeça pendida sobre o ombro ou escorada no vidro sujo do ônibus, ela sonhava.
Antes de ir, porém, havia o rato...
Que rato que nada! Qual o espanto, não ver nem pêlo que sobrasse do dito, nada, o chão limpo.
Lembrou a barata, ela também desaparecida no mistério, no desconhecido nefasto mistério, ao qual Lili não dera nenhuma importância na época. Mas agora precisava reconsiderar, carecia lembrar a barata...
Tomada por uma frouxura, sentou-se pesada - o quanto era possível a seu corpo mínimo -, sentou-se numa cadeira, cadeira de palha gasta felpuda. Zonza, avistou a si mesma no vidro do armarinho: sua cara distorcida, menos gente no reflexo; fiel, contudo, ao que vinha do espírito: o medo.
Medo de não estar sozinha. Ou pior: medo de estar sozinha. Medo de espiar a tranca da porta. Cerrada. Não entrara ninguém, não saíra ninguém. Medo.
Que pavor lhe incutia a idéia de uma companhia, um bicho escondido em sua casa, comendo os animais deixados mortos na sala-cozinha; e grande haveria de ser, comera o rato gordo, muito gordo; monstruoso, esse bicho, escondido sabe-se onde naquela casinha tão diminuta, que não havia mesmo lugar de esconderijo na casinha pequenininha de Lili. E que pavor lhe incutia este outro pensamento: sonambulara, ela, ou pordeus, enlouquecera? Seria possível que não o bicho, o monstro, mas ela própria tivesse comido o rato e também a barata, num desatino, e protegido isso da mais tênue lembrança?
Súbito, uma gargalhada veio-lhe desde o ventre e foi presa na boca, Lili mordendo a língua. Saiu daí suspirada uma lágrima, o que a deixou furiosa: não era certo chorar. Não estava triste. Porque o choro é filho da tristeza, e ela não estava triste. Estava era com medo. Teve raiva do seu choro errado. Quem chora ou ri numa hora errada, quando o mundo em volta pede o contrário, está louco. Teve medo de ter enlouquecido, e de repente subia outra gargalhada e maior, e Lili mordeu a língua.
* * *
Mi, mi, mi...
Chovia demais. Lili colocara um pires com leite no degrau da porta, chamava o gatinho marrom da vizinha. Ele se protegia da chuva sob a escada, os olhinhos brilhavam arregalados e redondos.
Mi, mi, mi, ela o chamava.Com os olhares cruzando-se, o engodo era mais difícil. Esses bichos enxergam dentro da nossa alma. Ela teria que o conquistar. Então sorriu, sorriu com sinceridade.
Agora o gato lambia o leite, e Lili fazia-lhe cafuné.
Pegou-o no colo e entraram. Ele bocejando, enfastiado.
Anoiteceu.
Lili, sentada na cama, observava o gatinho passar da sala-cozinha ao quarto-lavatório e voltar à sala-cozinha, como perguntando - se é que não o fazia - onde estava e por quê. Ora ele se esfregava em suas pernas. Ora pulava sobre a cama. Miava, retornando à sala-cozinha.
O gato miava muito e, com a barriga cheia, não era de fome. Mas qual diferença? Lili não se importava. Talvez nem estivesse ouvindo. Na verdade, botava-lhe atenção no tamanho: animalzinho pouco, ela ponderava, não serviria. Precisava de um maior.
Em momento algum ela teve pena do gatinho. Se o soltou foi porque não lhe servia. Precisava de um bicho maior.
No dia seguinte, deitada na cama, sem remorso ela contemplava o esforço duma tarde inteira. Faltara ao trabalho, obstinada. Sentia as carnes doídas, tamanha a força gasta no desvario. Força maior do que imaginava ter, maior que ela.
Era satisfeita, ao menos, no quê da experiência: queria saber do quanto era capaz o bicho, o monstro, medir-lhe em todo aspecto, seu porte, sua fome, e tinha ali para tanto um belo e enorme cachorro. Chamara-o para dentro de casa com mais facilidade que o gato, bastou estalar os dedos. Quebrara-lhe o pescoço numa luta feia e demorada, saíra com marcas, arranhões nos braços e no rosto. De sua cama, tinha os olhos fixos no cachorro estendido no chão da sala-cozinha, donde os outros desapareceram. Esperaria a noite toda para ver o monstro. Se preciso, esperaria o resto da vida, pacientemente, fixamente, tão imóvel quanto o cachorro morto.
Três, quatro horas, quatro-e-meia... piscava... ainda havia o cachorro, lá estava ele, estendido... ela esperaria... o encontro... piscava... quatro-e-quarenta-e-cinco...
Anda por uma rua cheia de gente. Todos vêm no sentido contrário. Esbarram nela. É uma tarde de sol intenso. Há muita gente nessa rua. Difícil caminhar assim. Ele está no meio dessa gente. Lili sente sua presença, olha para todos os lados e não o vê. Mas ele está ali, ela sente, provavelmente observando-a. E ser observada, reconhecida, faz com que ela sinta-se gente no meio daquela gente, pela primeira vez. Mais: ele sabe até o que ela pensa. "Por que não aparece? Por que se esconde?" Ela corre, bate-se nas pessoas, tropeça e cai. Não há mais ninguém na rua. Silêncio. A calçada é quente. Ela está caída, com a bochecha na calçada quente, os olhos fechados. Ele se aproxima. Ela sente que ele se aproxima, e não tem coragem de abrir os olhos. Sente que ele está bem à sua frente. Mas não tem coragem...
Pula da cama já amanheceu não há o cachorro mais.
Lili chora.
Assim, chorando, vai à sala-cozinha.
E se deita.
Estica braços e pernas, bem abertos.
·    Gente que vive só há muito por aí. E a solidão, mesmo quando regra, consegue, em alguns momentos, ser maior.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

CONTO: O BARRIL DE "AMONTILLADO" - Edgar Allan Poe

    Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a entrar pelo insulto, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza da minha índole, não ireis supor que me limitei a ameaçar. Acabaria por vingar-me; isto era ponto definitivamente assente, e a própria determinação com que o decidi afastava toda e qualquer idéia de risco. Devia não só castigar, mas castigar ficando impune. Um agravo não é vingado quando a vingança surpreende o vingador. E fica igualmente por vingar quando o vingador não consegue fazer-se reconhecer como tal àquele que o ofendeu.
    Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da idéia da sua imolação.
    Tinha um ponto fraco, este Fortunato sendo embora, sob outros aspectos, homem digno de respeito e mesmo de receio. Orgulhava-se da sua qualidade de entendido em vinhos. Poucos italianos possuem o verdadeiro espírito de virtuosidade. Na sua maior parte, o seu entusiasmo é adaptado às circunstâncias de tempo e de oportunidade para ludibriar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, à semelhança dos seus concidadãos, era um charlatão, mas na questão de vinhos era entendido. Neste aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu próprio era entendido em vinhos de reserva italianos, e comprava-os em grandes quantidades sempre que podia.
    Foi ao escurecer, numa tarde de grande loucura da quadra carnavalesca, que encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessivo calor, pois bebera de mais. Trajava de bufão; um fato justo e parcialmente às tiras, levando na cabeça um barrete cônico com guizos. Fiquei tão contente de o ver que julguei que nunca mais parava de lhe apertar a mão.
- Meu caro Fortunato - disse eu -, ainda bem que o encontro. Você tem hoje uma aparência notável! Saiba que recebi um barril de um vinho que passa por ser amontillado; mas tenho cá as minhas dúvidas.
- O quê? - disse ele - Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno Carnaval!
- Tenho as minhas dúvidas - respondi -, e estupidamente paguei o verdadeiro preço do amontillado sem ter consultado o meu amigo. Não o consegui encontrar e tinha receio de perder o negócio!
- Amontillado!
- Tenho as minhas dúvidas - insisti.
- Amontillado!
- E tenho de as resolver.
- Amontillado!
- Como vejo que está ocupado, vou procurar Luchesi. Se existe alguém com espírito crítico, é ele. Ele me dirá.
- Luchesi não distingue amontillado de xerez.
- No entanto, há muito idiota que acha que o seu gosto desafia o do meu amigo.
- Venha, vamos lá.
- Aonde?
- À sua cave.
- Não, meu amigo, não exigiria tanto da sua bondade. Vejo que tem compromissos. Luchesi...
- Não tenho compromisso nenhum, vamos.
- Não, meu amigo. Não será o compromisso, mas aquele frio terrível que bem sei que o aflige. A cave é insuportavelmente úmida. Está coberta de salitre.
- Mesmo assim, vamos lá. O frio não é nada. Amontillado! Você foi ludibriado. E quanto a Luchesi, não distingue xerez de amontillado.
    Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. Depois de pôr uma máscara de seda preta e de envergar um roquelaire cingido ao corpo, tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete.
    Não havia criados em casa; tinham desaparecido todos para festejar aquela quadra. Eu tinha-lhes dito que não voltaria senão de manhã e dera-lhes ordens explícitas para se não afastarem de casa. Ordens essas que foram o suficiente, disso estava eu certo, para assegurar o rápido desaparecimento de todos eles, mal voltara costas.
    Retirei das arandelas dois archotes e, dando um a Fortunato, conduzi-o através de diversos compartimentos até à entrada das caves. Desci uma grande escada de caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia. Quando chegamos ao fim da descida encontrávamo-nos ambos sobre o chão úmido das catacumbas dos Montresors.
    O andar do meu amigo era irregular e os guizos da capa tilintavam quando se movia.
- O barril? - perguntou.
- Está lá mais para diante - disse eu -, mas veja a teia branca de aranha que cintila nas paredes da cave.
Voltou-se para mim e pousou nos meus olhos duas órbitas enevoadas pelos fumos da intoxicação.
- Salitre? - perguntou por fim.
- Sim - respondi. - Há quanto tempo tem essa tosse?
- Cof!, cof!, cof! cof!, cof!, cof!
O meu amigo ficou sem poder responder-me durante bastante tempo.
- Não é nada - acabou por dizer.
- Venha - disse-lhe com decisão. - Retrocedamos, a sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos. Você é um homem cuja falta se sentiria.               Quanto a mim, não importa. Retrocedamos. Ainda é capaz de adoecer e não quero assumir tal responsabilidade. Além disso, há Luchesi...
- Basta! - replicou. - A tosse não é nada, não me vai matar. Não vou morrer por causa da tosse.
- Pois decerto que não, pois decerto - respondi -; não é minha intenção alarmá-lo desnecessariamente, mas deve usar de cautela. Um gole deste médoc defender-nos-á da umidade.
    Quebrei o gargalo de uma garrafa que retirei de uma longa fila de muitas outras iguais que jaziam no bolor.
- Beba - disse, apresentando-lhe o vinho.
Levou-o aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e abanou a cabeça significativamente, enquanto os guizos tilintavam.
- Bebo - disse - aos mortos que repousam à nossa volta.
- E eu para que você viva muito.
    Novamente me tomou pelo braço e prosseguimos.
- Estas catacumbas são enormes - disse ele.
- Os Montresors - respondi - constituíam uma família grande e numerosa.
- Não me lembro do vosso brasão.
- Um enorme pé humano, de ouro, em campo azul; o pé esmaga uma serpente rastejante cujas presas estão ferradas no calcanhar.
- E a divisa?
- Nemo me impune lacessit.
- Ótimo! - disse ele.
    O vinho brilhava no seu olhar e os guizos tilintavam. A minha própria disposição melhorara com o médoc. Tinha passado por entre paredes de ossos empilhados, à mistura com barris e barris, nos mais recônditos escaninhos das catacumbas. Parei novamente e desta vez fiz questão de segurar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.
- Salitre! - disse eu -, veja como aumenta. Parece musgo nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem por entre os ossos. Venha, vamo-nos embora que já é muito tarde. A sua tosse...
- Não faz mal - retorquiu -, continuaremos. Antes, porém, mais um trago de rnédoc.
Abri e passei-lhe uma garrafa de De Grâve. Despejou-a de um trago. Os olhos brilharam-lhe com um fulgor feroz. Riu e atirou a garrafa ao ar, com uns gestos que não entendi.
Olhei-o surpreso. Repetiu o movimento grotesco.
- Não compreende?
- Não, não compreendo - respondi.
- Então não pertence à irmandade.
- Como?
- Quero eu dizer que não pertence à Maçonaria.
- Sim, sim - disse -, sim, pertenço.
- Você? Impossível! Um maçon?
- Sim, um maçon - respondi.
- Um sinal - disse ele.
- Aqui o tem - retorqui, mostrando uma colher de pedreiro que retirei das dobras do meu roquelaire.
- Está a brincar - exclamou, recuando alguns passos. - Mas vamos lá ao amontillado.
- Assim seja - disse eu, tornando a colocar a ferramenta sob a capa e tornando a oferecer-lhe o meu braço. Apoiou-se nele pesadamente. Continuamos o nosso caminho em procura do amontillado. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, atravessamos outros, descemos novamente e chegamos a uma profunda cripta na qual a rarefação do ar fazia com que os archotes reluzissem em vez de arderem em chama.
    No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido.
    Foi em vão que Fortunato, levantando o seu tíbio archote, tentou sondar a profundidade do recesso. A enfraquecida luz não nos permitia ver-lhe o fim.
- Continue - disse eu -, o amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi...
- É um ignorante - interrompeu o meu amigo, enquanto avançava, vacilante, seguido por mim. Num instante atingira o extremo do nicho, e vendo que não podia continuar por causa da rocha, ficou estupidamente desorientado. Um momento mais e tinha-o agrilhoado ao granito. Havia na parede dois grampos de ferro, distantes um do outro, na horizontal, cerca de sessenta centímetros. De um deles pendia uma pequena corrente e do outro um cadeado. Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos. Ficara demasiado surpreendido para oferecer resistência. Retirei a chave e recuei.
- Passe a mão pela parede - disse eu. - Não deixará de sentir o salitre. Na realidade está muito úmido. Mais uma vez lhe suplico que nos retiremos. Não lhe convém? Nesse caso, tenho realmente de o deixar. Mas, primeiro, quero prestar-lhe todas as pequenas atenções ao meu alcance.
- O amontillado! - berrou o meu amigo, que se não recompusera ainda do espanto em que se encontrava.
- É verdade - respondi. - O amontillado.
    Ao dizer isto, pus-me a procurar com todo o afã por entre as pilhas de ossos de que já falei. Atirando com eles para o lado, pus a descoberto uma quantidade de pedras e argamassa. Com estes materiais e com a ajuda da minha colher de pedreiro, comecei a entaipar com todo o vigor a entrada do nicho.
Mal tinha colocado a primeira fiada de pedras quando descobri que a embriaguez de Fortunato tinha em grande parte desaparecido. A este respeito, o primeiro indício foi-me dado por um longo gemido vindo da profundidade do recesso. Não era o gemido de um ébrio. Sucedeu-se um prolongado e obstinado silêncio. Pus a segunda fiada de pedras, a terceira e a quarta. Em seguida ouvi as vibrações furiosas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para me ser possível ouvi-lo com maior satisfação, suspendi a minha tarefa e sentei-me no montículo de ossos. Quando finalmente cessou o tilintar, retomei a colher de pedreiro e completei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima fiadas. A parede estava agora quase ao nível do meu peito. Parei novamente e, elevando o archote acima do parapeito, fiz incidir alguns raios de luz sobre a figura que lá estava dentro.
    Uma sucessão de gritos altos e agudos, irrompendo de súbito da garganta da figura agrilhoada, quase me atirou violentamente para trás. Por um breve momento hesitei, tremi. Desembainhei o florete e com ele comecei a tatear o recesso, mas bastou pensar um momento para voltar a sentir-me seguro. Coloquei a mão sobre a sólida construção das catacumbas e fiquei satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os como um eco, juntei-me a eles, ultrapassei-os em volume e força. Depois disto, o outro sossegou.
    Era agora meia-noite e a minha tarefa aproximava-se do fim. Completara já a oitava, a nona e a décima fiadas. Tinha acabado uma porção da décima primeira e última; faltava apenas colocar e fixar uma pequena pedra. Lutava com o seu peso; coloquei-a parcialmente na posição que lhe cabia. Soltou-se então do nicho um riso abafado que me arrepiou os cabelos. Seguiu-se uma voz triste que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. Dizia aquela voz:
- Ah!, ah!, ah!, he!, he!, boa piada, de fato, excelente gracejo. Havemos de rir bastante acerca disto, lá no palácio, he!, he!, he!, acerca do nosso vinho, he!, he!, he!
- O amontillado? - disse eu.
- he!, he!, he!, he!, he!, he!, sim, o amontillado. Mas não estará a fazer-se tarde? Não estarão à nossa espera no palácio lady Fortunato e os convidados? Vamo-nos embora.
- Sim - disse eu -, vamo-nos.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim - disse eu -, pelo amor de Deus!
Em vão esperei uma resposta a estas palavras. Comecei a ficar impaciente. Chamei em voz alta:
- Fortunato!
Não obtive resposta. Chamei novamente:
- Fortunato!
  Continuei sem resposta. Meti um archote pela pequena abertura e deixei-o cair lá dentro. Em resposta ouvi apenas um tilintar de guizos. Senti o coração oprimido, dada a forte umidade das catacumbas. Apressei-me a pôr fim à minha tarefa. Forcei a última pedra no buraco, e fixei-a com a argamassa. De encontro a esta nova parede tornei a colocar a velha muralha de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou.
In pace requiescat!

terça-feira, 29 de novembro de 2011

LYRICS



Uma pequena homenagem
(ou "não é sempre que um gênio circula na cidade")


FUTUROS AMANTES (Chico Buarque)

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

CONTO: OS TURISTAS SECRETOS - Moacyr Scliar

         Havia um casal que tinha uma inveja terrível dos amigos turistas – especialmente dos que faziam turismo no exterior. Ele, pequeno funcionário de uma grande firma, ela, professora primária, jamais tinham conseguido juntar o suficiente para viajar. Quando dava para as prestações das passagens não chegava para os dólares, e vice-versa; e assim, ano após ano, acabavam ficado em casa. Economizavam, compravam menos roupa, andavam só de ônibus, comiam menos – mas não conseguiam viajar para o exterior. Às vezes passavam uns dias na praia. E era tudo.

          Contudo, tamanha era a vontade que tinham de contar para os amigos sobre as maravilhas da Europa, que acabaram bolando um plano. Todos os anos, no fim de janeiro, telefonavam aos amigos: estavam se despedindo, viajavam para o Velho Mundo. De fato, alguns dias depois começavam a chegar postais de cidades européias, Roma, Veneza, Florença; e ao fim de um mês eles estavam de volta, convidando os amigos para verem os ‘slides’ da viagem. E as coisas interessantes que contavam! Até dividiam os assuntos: a ele cabia comentar os hotéis, os serviços aéreos, a cotação das moedas, e também o lado pitoresco das viagens; a ela tocava o lado erudito: comentários sobre os museus e locais históricos, peças teatrais que tinham visto. O filho, de dez anos, não contava nada, mas confirmava tudo; e suspirava quando os pais diziam:
 
        – Como fomos felizes em Florença!
 
        O que os amigos não conseguiam descobrir é de onde saíra o dinheiro para a viagem; um, mais indiscreto, chegou a perguntar. Os dois sorriram, misteriosos, falaram numa herança e desconversaram.
 
        Depois é que ficou se sabendo.
 
        Não viajavam coisa nenhuma. Nem saíam da cidade. Ficavam trancados em casa durante todo o mês de férias. Ela ficava estudando os folhetos das companhias de turismo, sobre – por exemplo – a cidade de Florença: a história de Florença, os museus de Florença, os monumentos de Florença. Ele, num pequeno laboratório fotográfico, montava ‘slides’ em que as imagens deles estavam superpostas a imagens de florença. Escrevia os cartões-postais, colava neles selos usados com carimbos falsificados. Quanto ao menino, decorava as histórias contadas pelos pais para confirmá-las se necessário.
 
        Só saíam de casa tarde da noite. O menino, para fazer um pouco de exercício; ela, para fazer compras num supermercado distante; e ele, para depositar nas caixas de correspondência dos amigos os postais.
 
        Poderia ter durado muito e muitos anos, esta história. Foi ela quem estragou tudo. Lá pelas tantas, cansou de ter um marido pobre, que só lhe proporcionava excursões fingidas. Apaixonou-se por um piloto, que lhe prometeu muitas viagens, para os lugares mais exóticos. E acabou pedindo o divórcio.
 
        Beijaram-se pela última vez ao sair do escritório do advogado.
 
        – A verdade – disse ele – é que me diverti muito com a história toda.
 
        – Eu também me diverti muito – ela disse.
 
        – Fomos muito felizes em Florença – suspirou ele.
 
        – É verdade – ela disse, com lágrimas nos olhos. E prometeu-se que nunca mais iria a Florença.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CONTO: O PRIMEIRO DIA - Miguel Souza Tavares

O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.

Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.

Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama.

Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.

Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é próprio de gente civilizada. Por alto, entre o living, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.

“Até agora vou-me aguentando”, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.

Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?”

Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.

Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, uns legos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

CONTO: UMA VELA PARA DARIO - Dalton Trevisan

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MICROCONTO - Mário Garrastazu Médici

Inconformada, a solteirona deu ultimato ao amante, vizinho de porta do quinto andar:
Quero me mudar para o quarto.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

CONTO: A REPARTIÇÃO DOS PÃES - Clarice Lispector

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

MICROCONTO (Mário Garrastazu Médici)

Antes de descobrir, em lugar da areia ansiada por sete anos, a parede de pedra ainda mais sólida, a colherinha se partiu em duas.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CONTO: BRONCOBURGER - Mário Garrastazu Médici

Eu de novo, Asta.
Tua voz fica mais rouca na caixa postal.
O celular que te dei de presente deve estar no silencioso como ensinei, para não perturbar o sono da Débora. Vocês já devem estar dormindo. Mas tive que ligar outra vez. Queria muito falar com a pequena, ouvir a vozinha dela, dizer o quanto eu procurei esse pinguim azul que ela viu no programa, Pablo, não é?
É uma da manhã, já desligaram a tevê, só sobraram as garçonetes a me olhar enviesado. Se bem que elas sempre me olharam torto, desde a primeira quarta-feira, tu conhece o jeitão do nego, uma piadinha saliente aqui, um olhar malicioso ali, se deixarem já me encosto, já dou um abraço, já passo a mão.
Não é por causa delas que eu venho, pelo menos não é só por causa delas. Sozinho faz um ano nessa cidade, o sujeito tem que arrumar alguma diversão. As minhas são simples, tu conhece bem. Uma boa carne, cerveja bem gelada, o jogo do grêmio, um retoço com as gurias.
Eu sei que essa parte te deixa mais triste, alemoa, sei que é essa parte que vem tornando nossos telefonemas cada vez mais silenciosos, uns silêncios prolongados que chegam a arranhar o ouvido. Eu tô aqui trabalhando por nós, não esquece, por nós e pela Debrinha, pra gente um dia morar num lugar com nome de cidade, porto, santo, o caralho, e não numa linha. Porque linha sempre me lembrou aqueles hipnotizadores de feira, que deitavam um traço no chão e punham a galinha inerte, sem poder se mover, fixada naquele risco. Não quero ser galinha a vida inteira na Linha Genehr, amor. Sei que sempre vou ser pinto miúdo, mas quero ter os meus voos, não importa sejam curtos e fracos, mas os meus voos. E que os do meu ninho possam voar comigo.
Por isso essa mudança pra cá, por isso esse ano todo morando na Capital, vendendo colchão de mola desde as sete da manhã de segunda a sábado, visitando trinta clientes por dia, cafezinho, sorriso, aperto de mão sebosa. Por isso os plantões na loja nos domin...

Oi. Eu de novo. Bosta de caixa postal.
Pois é, nos domingos. Daí só me sobra a quarta de noite pra ver o tricolor, aqui nessa lanchonete descobri um sanduíche de carne de um quarto de quilo, um almondegão de picanha com cebola e queijo, chama BroncoBurger, com duas cervejas bem geladas desce que é uma beleza. Hoje já tomei quatro, daí fico pensando nessas coisas, agora vem a garçonete mais gostosa me mandar embora, já acabou o jogo, fechou a cozinha, terminou a festa. É a mais novinha, o nome dela é Carol e devolve com asco meus olhares, mas me lembra de ti, Asta.
De como tu era bonita, as mesmas ancas, o mesmo olho azul, o cabelo louro escorrido.
Na verdade me lembra de mim, de um jeito que eu tinha de te olhar, de me encantar a cada movimento. E tu ainda é uma mulher maravilhosa, alemoa. Não sou só eu quem acha, todo o povo da Linha sempre disse que eu tinha muita sorte, o Welter da venda, esse que tu disse que visitou teu pai, o Welter sempre com o olho espichado pra tua bunda, tuas tetas, pensa que eu não via mas eu via.
Hoje eu tomei essas seis ou sete cervejas com meu BroncoBurger de sempre e deu vontade de voltar, Asta. Deu vontade de devolver o Gol da firma, de mandar o supervisor sentar no conjunto de molas - sem a capa protetora -, de pegar o ônibus da madrugada e ver vocês acordarem. Eu sei que já tem mais de três meses da última vez que  vi a Débora, e que já tinha duas semanas que eu não ligava. Mas a vida corre demais aqui nessa merda de terra, esse mês dobrei a meta, viu que tinha um dinheirinho extra pra tevê grande nova que tu queria?
Daí esque...

Alô. Cacete.
Esqueci.
Esqueci que vim para Porto Alegre trabalhar por vocês, para deixarmos pra trás a Linha de vez. Juntos.
Esqueci.
Entre um folder de colchão e os travesseiros de pena de ganso, entre tirar pedido sobre pedido e os extratos diários nesse telefone de tela engordurada dos infernos que me deram, entre uma cerveja e uma olhada nas coxas das gurias que vêm com os namorados ver o jogo, esqueci.
Só que hoje lembrei, Asta.
Sabe como foi?
Veio um casal diferente hoje. Acho que não sabiam que era dia de jogo e trouxeram uma filhinha do tamanho da Débora. Sentaram numa mesa perto da minha, alheios ao burburinho do meio tempo, ao pagode improvisado que se instala sempre que o tricolor está ganhando. Pediram seus sanduíches, refrigerantes, batatinha sorriso para a menina.
E ela começou a sambar pra mim, a espevitada. Bem no compasso certo do bumbo, pezinho pra frente, pezinho pra trás, no ritmo da batida e sem tirar o olho de mim. De início, já tocado pela décima cerveja e pelo short jeans de uma morena bunduda dançando a menos de dois metros, pensei em dizer sai pra lá, filhinha, que isso é coisa de gente grande. Mas a guria continuava aquele passinho, com um sorriso inexplicável dirigido pra mim. Um sorriso solar, de bergamota doce sentado na grama de casa, lá nos fundos, jogando as sementes na cabeça do cusco. Não pra machucar, mas pra ele vir se esfregando querendo carinho. Um sorriso de goiabada fervendo saindo do tacho pra sapecar o beiço, de pé quente pisando a terra fria e fofa do fundo do açude num dia daqueles. Um sorr..

(Por que fazem essas merdas com um tempo tão curtinho?)
Um sorriso desses que estou perdendo todos os dias e que o puto do Welter deve desfrutar cada vez que tu vai no mercado com a Débora, buscar um feijão, um leite, um melado, e ele oferece bala de troco, a azedinha de morango que a pequena gosta,  com aqueles dedos ossudos nojentos.
O que  esse veado foi falar com o teu pai? Foi pedir tua mão? Tu já é casada, ele que vá atirar nas pombas do Seu Augusto, que tem aquelas três gordas encalhadas. Vontade de meter a mão na cara desse sujeito, nunca me desceu. Aposto que teu pai gostou, né? O velho sempre quis um alemão do cu vermelho pra matear com ele no sítio, nunca engoliu a ideia de ter genro pardo. Foda-se. Tu gostava, tu sempre gostou, tu costumava adorar os amassos no fuca atrás da olaria do Schenkel. Depois foi rareando, foi esfriando, não é assim mesmo depois que nascem os piás?
Tô com saudade.
Dezesseis cervejas. Um quadrado perfeito de garrafas verdes na minha frente. Quatro por quatro. Bonito, linhas retas, sem cantos pontudos demais. Bem o contrário de nós, com tanta felpa e rebarba se desprendendo da madeira e machucando os dedos.
Vou embora. Agora vão fechar mesmo a bodega, não tem mais jeito.
Queria mesmo que não fosse tão tarde.
Que eu não estivesse com a língua tão enrolada, com a cabeça assim oca, que a Débora ainda pudesse estar acordada.
Acordada para me ouvir dizer boa-noite-filhinha-vai-ficar-tudo-bem-papai-te-ama-e-vai-voltar-logo e não dormindo abraçada na merda de pinguim azul que o filho da pu...

***


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CADERNOS DO DR. EDMÍLSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 7 - Alexandre Boeira

Era o que se podia fazer. Quando a ação fica para depois a hora é da ficção. O almoço com Lucinha tinha levado mais tempo do que o planejado, mesmo que tenha valido a única informação que apontava para uma linha de investigação mais palpável. A entrega da maconha ficara mais uma vez adiada. Para não sentir a culpa de mais um dia de parcos progressos, Brasil resolveu ler mais um arquivo do Dr. Edmílson, escrito antes do cerebelo do sofrível escritor ser invadido pelo pequeno projétil .32 de propriedades afrodisíacas. Ele havia acertado, Smith & Wesson .32, outra informação valiosa da Lucinha. Colocou em seu planejamento pesquisar o cadastro de armas apreendidas e revirou mais uma vez os bolsos. Ao encontrar a pen-drive resignou-se. Após um longo suspiro, escolheu mais um arquivo das anotações do morto. Já havia checado os nomes e os processos dos clientes, todos existiam, mas que parecia ficção, ah parecia.   Clicou duas vezes no ícone imitando uma pasta arquivo amarela - pensou consigo pela enésima vez, porque amarela? - e o texto apareceu.

Não deu. Não aguentei. Apertei mesmo, e com vontade, o indicador dobrado e o polegar por cima, com força.
Também, né? A gente aperta cada merda o dia todo. Acorda, aperta a pasta de dentes, aperta a torneira da pia, aperta a descarga do vaso, aperta e sacode até a ponta da glande para evitar a última e teimosa gota. Aliás, nem adianta, ela pinga na cueca assim mesmo.
Mais adiante a gente aperta os botões do microondas, o botão da cafeteira, aperta a asa da xícara para levar o café à boca. Não satisfeito, aperta a merda do nó da gravata, aperta a fivela do cinto, e assim vai.
Pensa que para quando sai de casa? Aperta o botão do alarme do carro, aperta o cinto de segurança, aperta o botão para abrir a garagem, aperta para fechar.
Chegando ao trabalho? Claro que continua. Aperta a senha para entrar no prédio da repartição, aperta o botão para chamar o elevador, o botão para o andar certo, às vezes até aperta o errado.
E mãos? Quem inventou essa coisa de apertar mãos? É tanta mão apertada que nem sei mais qual é a minha.
Foi por isso então, Dr. Acho que estou plenamente justificado. Nem sei por que tanta celeuma por causa disso. Um exagero isso de levar a esse ponto um fato de tamanha insignificância. A mesma coisa eu disse lá na delegacia. Disse também que um Delegado tem mais o que fazer, mas não pretendi ofender ninguém.
Quando recebi o primeiro tapa, sequer perdi a compostura. Também não me ofendi. Eu entendo. Essas coisas acontecem, em especial na delegacia. Eles estão acostumados com outro tipo de gente. Respeito? Não Doutor, o senhor não entendeu. Tudo bem, o delegado também não entendeu. Isso não tem nada a ver com respeito ou falta dele, foi apenas oportunidade, uma oportunidade de retribuir às mãos que apertam tanta porcaria, dar a elas um momento de prazer. E olha que foi só uma que se esbaldou. Foi isso que pensei quando vi ali, bem na minha frente no elevador, aquela pontinha de seio, aquele biquinho fujão, um mamilo cor-de-rosa escapulindo do decote da menina, uma verdadeira Larissa Riquelme brasileira. Aquele mamilo estava falando comigo, estava pedindo. Tanto pediu que eu apertei. O senhor também apertaria Dr. Edmílson.
Foi assim que ele entrou no escritório, sem freios, literalmente. Era um Fenemê na banguela. Passou reto pela Dona Nívea, que nada viu sobre seu potencial financeiro, entrou sala adentro contando sem cerimônias sua história, depenicando a paciência que já me faltava.  Falou sem parar, olvidando de perguntar se alguém queria ouvir. Falou de pé, sem respiro ou pausa e o pior, antes que eu pudesse encenar meu telefonema imaginário. Ele me pegou de surpresa, quase literalmente com as calças na mão. Sou uma pessoa metódica, chego as oito horas no escritório, as oito e quinze tomo o primeiro cafezinho, as oito e meia acendo o primeiro dos oito cigarros que fumo por dia. A primeira consulta sempre é as nove e meia. Ele chegou as dez para as nove, quase me pegou na cagadinha das oito e quarenta. O cheiro ele deve ter sentido. Dona Nívea sente lá da outra sala.
Minhas primeiras impressões foram: ele sabe meu nome, ele deve ter algum retardo leve e, por último, aquele roxo no olho não era maquiagem, foi porrada mesmo. Em retribuição à sua entrada deselegante, já saí cagando na cabeça dele. Nem dez horas da manhã e já era a segunda.
- Vem cá ô alicate, tu é besta mesmo ou tá só se fazendo? Tu não sabe não que o processo que começa contigo sendo preso termina na Vara Criminal? Não sabe ler a placa? Advogado de família. De família! Te manda já daqui e vai apertar os colhões de um criminalista.
- Não doutor, não é esse o caso. Não foi por causa disso que eu lhe procurei.
- Ah não? Então tu conta essa história sempre? É pra quebrar o gelo?
- Bem doutor, tem relação com a história, mas não é por causa de processo criminal que eu estou aqui. É por causa do divórcio. Minha mulher pediu.
Minha cara de besta deve ter autorizado o cidadão a contar o resto da história, pois ele sentou, não sem antes me estender a mão, a qual prontamente recusei sem sequer examiná-la dessa vez. Apertar a mão desse aí? Eu fora.
Tem dias que a gente abre a porta do escritório e torce para ninguém entrar. Esse é o dia em que eles entram. São meus clientes, mas preferia que não fossem. Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria fazer outra coisa, mas não sei.
Antenor o nome dele, deveria ser Aparício, mas nem toda piada já vem pronta. Servidor da Secretaria Estadual da Fazenda, concursado aos vinte anos e chefe de seção desde os trinta, Antenor Graça Ramos, casado e sem filhos, levava uma vida estável até o dia em que completou quarenta e cinco anos de idade. Nesse dia passou o aniversário absorto em seus próprios pensamentos, uma tortura inimaginável. A esposa estranhou, mas não muito, a simpatia nunca fora a característica marcante daquele homem baixo e de bigodes ralos que teimava manter.
Na semana seguinte ele decidiu, levaria sua vida normal, mas não se privaria de nada que o mundo até então lhe sonegara. Trabalharia como sempre, seguiria pontual, reto e honesto. Porém, não reprimiria mais os desejos das mãos, das mãos que formigavam quando os olhos davam em uma bunda, umas coxas ou uns peitos. Ai, uns mamilos rosados. A partir daí, Antenor desandou a apalpar, amaciar, afofar, tatear, beliscar e principalmente, apertar.
Começou com a estagiária, um apertão nas costelas, desajeitado e inexperiente. Crica, 18 anos, nem deu bola. Achou graça do tio da repartição. Ele não, ele gostou e não parou mais.
Tudo ia bem. Os problemas eram conforme o esperado, e o prazer que o ato lhe dava compensava qualquer cara feia, safanão ou mesmo alguns tapas no rosto.
Revigorou-se. Até o sexo em casa melhorou, embora jamais apertasse Regina. Isso não era coisa para se fazer em casa.
Então o óbvio aconteceu. Antenor apertou o mamilo errado e a casa caiu. Foi preso em flagrante. O bafo foi forte, a dona dos mamilos que a ele se mostraram irresistíveis não estava no elevador da secretaria para visitar uma amiga, fazer uma consulta ou mesmo protocolar um documento. Antenor não sabia, mas Márcia era a noiva do chefe da equipe de apoio da Divisão do Trânsito de Mercadorias. A equipe de apoio nada mais era que o grupo de policiais militares que acompanhava os fiscais da chamada Turma Volante nas operações mais perigosas.
O chefe preferiu nada relatar ao Secretário ou ao superior imediato de Antenor, o que lhe foi até vantajoso quanto ao emprego e cargo de chefia. Porém, não abriu mão da fazer Antenor conhecer a salinha da guarda. Depois disso, foi conduzido discretamente, no próprio carro da repartição, ao plantão da polícia judiciária, sob a acusação de incurso no art. 213 do Código Penal.
O fato estaria rapidamente solucionado na polícia civil não fosse o diálogo travado com o delegado, conforme Antenor mesmo antecipou-se em narrar. Afinal as relações entre as polícias não indicam que o delegado agasalharia a forçada capitulação do brigadiano, apenas porque a vítima era a sua noiva. A desclassificação do fato para importunação ofensiva ao pudor ou para perturbação da tranqüilidade era certa.
- Tudo bem. Que tu és tarado eu já sei. O que eu não sei ainda é onde eu entro nessa história. Dá para fazer o favor de resumir o babado?
- Estou no ponto doutor. É aí que a coisa desandou.
Conforme ele mesmo havia dito, estava preparado e achava completamente naturais as reações físicas das vítimas e das pessoas a elas chegadas. Aceitava como preço justo os safanões na sala da guarda e os tabefes na delegacia. A merda se deu quando ainda durante a lavratura do flagrante, a fim de adiantar o serviço e, antes mesmo do término das negociações que se travavam para o ajuste e o arquivamento informal do inusitado qüiproquó, no intuito de fazer cumprir o disposto no art. 5º, inciso LXIII da Constituição, o escrivão de polícia teve a infeliz idéia de telefonar para a esposa do preso.
Regina não gostou nem um pouco de saber da narrativa detalhada que o servidor lhe passou dos fatos. Gostou menos ainda quando compareceu ao distrito policial e lhe foi reservada a cadeira ao lado de Marcinha, a vítima do bolinador, onde sentou contrariada para esperar a solução do caso. Será que essa moça nunca ouviu falar em sutiã? Recato nada tem a ver com a lei da gravidade e seus efeitos.
Durante a grave discussão que teve com Antenor quando chegaram em casa, embora reafirmasse que isso não seria a razão do rompimento, Regina bradou em três oportunidades que tais seios expostos assim sem pudor não podiam ser de mulher decente, e que se ele não gostava dos seios dela, porque então lhe negou os implantes que tanto pedia.
Pois bem, resolvida a questão criminal, cujo processo morreu na casca, restou a ação de divórcio, da qual Antenor já havia sido citado e que continha pedido indenizatório por danos morais e desconto em folha da pensão postulada no máximo jurisprudencialmente praticado.
- Somente o senhor pode me ajudar, Dr. Edmílson. Suas habilidades são essenciais nessa causa.
- Teu caso é médico. A habilidade que tu precisa é cirúrgica.  Só a amputação de ambas as mãos te salva. Passa teus dados para a Dona Nívea, assina com ela a procuração e o contrato de honorários. Ela vai te dizer que documentos tens de me trazer. Só mais uma coisa. Olha lá, hein? Se relar a mão naquela bunda eu te capo.
Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria saber fazer outra coisa, mas não sei.