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quarta-feira, 8 de junho de 2011

CONTO: NA RECUPERAÇÃO - Mário Garrastazu Médici

Uma hora e meia de cirurgia.
Três horas na recuperação.
Depois, a ver, dormimos no hospital ou vamos para casa. Depende da anestesia. Foi o que disseram aqui na recepção.
Minha mulher necessita fazer uma pequena cirurgia, procedimento simples, um breve intervalo na rotina.
Vão retirar uma série de parafusos incomodativos que fixaram uma haste de titânio dentro do osso há três anos. Era para consolidar a perna fraturada, mas agora não possuem função outra que premer nervos da articulação de forma permanente, doendo uma dor fininha, e avisar da chuva.
Nessas quatro horas e meia fico aqui. Na ante-sala da recuperação. Trouxe os pertences dela, para o caso do pernoite forçado. Trouxe um pocket de contos do Tchekhov. Fico aqui, submerso nas histórias do russo, nem vejo o relógio andar. Sempre que mergulho num livro despercebo passar o tempo, lá na obra também é assim. O pessoal vai pro intervalo com as revistas de sacanagem, eu vou com meu livrinho.
Se o pessoal ao redor fizesse silêncio, melhor.
Mas deixa, todos estão preocupados com os seus. A apreensão em cada rosto, pouco riso. Sete ou oito pessoas, espalhadas pela sala de espera (“que hospital é mesmo este? Vim a tantos, por força dessa fratura e de outros problemas médicos, que já nem sei onde estou...”). Cada uma deve ter sua história, cada caso com a sua gravidade menor ou maior.
A senhora do canto, com ar de professora, no celular. Não consigo ouvir bem, mas imagino que esteja falando com o irmão. Sobre o pai, bastante idoso, paciente de uma delicada cirurgia de diverticulite. O velho, que mora com ela e já dá  suficiente trabalho, não compartilhado com o irmão, terá que dormir por três noites no hospital.

“Por que tu não podes dormir uma noite com ele?”
 “Mas será que precisa mesmo? Vou perguntar pro pai.”
“Se tu perguntar ele vai dizer que não precisa, mas precisa sim, imagina um homem de 94 anos sozinho no hospital.”
“Mas eu tô gripado, imagina passar essa gripe pro velho”
“Sei. Gripe. De novo. Bom, ou tu dorme, ou paga alguém pra dormir, ele já mora comigo e amanhã e depois eu dou aula à noite, não tem jeito. Tchau”.

A gorda aqui do lado. Mal cabe na cadeira, com seus quase três dígitos. O marido entrou de muletas no bloco, arrastando envergadura similar. Pelo que entendi, uma cirurgia em um dos joelhos, fatigado de suportar tamanho colosso. Nenhum diálogo entre os dois, mas os olhares. Ternos. Já saudosos. Como se um não pudesse passar sequer uma noite sobre a terra que não ao lado do outro, seja lá em que espécie de leito reforçado durmam.

Amor. Fica bem. Volta logo.”
“Pode deixar. São só uns pontinhos. E vou emagrecer depois disso. Mas antes vou ter que ficar de cama uns dias (e aqui ele pisca o olho).”
“Não tem problema. Acho que vou gostar bastante desse período de recuperação” (e ela pisca de volta).

A velha negra lá da ponta. Humilde. Lenço na cabeça. Fazendo seu tricô. No mínimo a filha veio arrebitar o nariz a custo de vários meses de ordenado da pobre, quase sempre de joelhos, faxineira de olhos no chão como os que agora põe no linóleo azul da sala, vez ou outra. Mas está feliz, feliz de poder proporcionar essa nova beleza à amadinha.

“Se precisar, faxino na madruga. Capaz que a minha lindinha vai deixar de namorar moço bom por causa desse nosso nariz achatado. O doutor ainda fez em prestação, é só mais um carnezinho pra botar debaixo do santo”.

Mais um carnê. Debaixo do santo. Sempre os rublos e os copeques, como nas histórias do russo. Lembro que eu mesmo não recebi esse mês. Também, faltei quase todos os dias, envolvido com essa romaria hospitalar. O mestre Ferreira deve estar querendo o meu pescoço, saudade do pedreiro leitor, ninguém assenta tijolo como eu, mesmo nos dias mais avoado. E com tempo de chuva a obra anda pouco. Mas não deu pra trabalhar este mês. Acho que no mês passado fui na obra poucos dias também. Não lembro.
Paciência.
Doença na família tem preferência.
Acho que é o doutor ali saindo, vou perguntar como foi. Não. Aquele deve ser o anestesista, me olhando feio, nem vou chegar perto. Como olham a gente feio aqui nesse hospital. A recepcionista, o doutor, o anestesista, o segurança. Tudo de cara feia. Deve ser fome, já são quase dez. E eu só com aquele pãozinho com manteiga da manhã, mas tenho o dinheiro contado pro táxi, que ela não vai poder caminhar na volta.
Agora começa o êxodo. Já conheço a rotina. É sair desta sala confortável, com poltrona estofada, copinho de água gelada e tevê de tela grande com legenda, e ir para o corredor estreito da recuperação, onde ninguém fala com a gente. Só silêncio. E cara feia.
Tudo bem. Só deve faltar mais uma hora, pelas minhas contas. Também, já é quase meia noite. A professora já se recolheu. A gorda também, de mãos dadas pelo corredor com o marido que acaba de passar numa cama de rodinhas, a cirurgia demorou mais que o esperado, devem ter penado para achar o joelho do mamute.
Sobramos eu e a negra do tricô. A essa altura ela cochila entre um ponto e outro, mas a cada despertar assustado me lança um sorriso mais cheio de simpatia e esperança do que dentes.

“Minha menina já deve estar saindo”

E deve mesmo. Já passou da meia-noite, o turno das enfermeiras trocou, não há mais médicos ou anestesistas ou recepcionistas de cara fechada. Só essa porta de aço maciço da sala de recuperação, e meia dúzia de cadeiras desconfortáveis no corredor, para ninguém passar a noite incomodando.
Olha aí, olha a filha da velha saindo.
Viu. Bingo. Nariz.
Lá vai a velha empurrando sua princesa na cadeira de rodas, rumo ao futuro sorridente montado em branco alazão. E a minha menina? E essa dor de cabeça que não passa, deve ser fome. Vou tocar o interfone. O rapaz que veio trazer a filha da velha tinha uma carinha melhor, deve ser novo aqui, não me deu nenhuma olhada de buldogue. Aí vem ele. Deve ser novo mesmo, todo atrapalhado, diz que não tem mais ninguém na recuperação, deve ter havido algum engano, olha lá de novo. Não.

“Todos os pacientes já foram para suas casas, ou para os seus quartos” diz ele. “Olhe de novo lá na recepção, senhor”.

Mas não, menino, ela veio para cá, está em cirurgia há quase seis horas, me fala a verdade, deu alguma coisa errada na anestesia, pode me dizer, prefiro saber logo. Não viu ela mais cedo? Vê aqui, vou te mostrar uma foto. Diabo, marido de meia-tigela, nem um retratinho três por quatro na carteira. A dor de cabeça piorou, está mais forte do que nos outros dias. Não tem mais ninguém na recepção, moço, pra que quarto mandaram a minha esposa? Será que vou ter que chamar a polícia, vi num filme de hospital uma vez que eles enganavam a família para manter os pacientes em coma e retirar os órgãos, ninguém vai abrir minha mulher como um peixe, ela nunca quis saber desse negócio. Não vou incomodar a polícia com esse assunto, deve ter havido um pequeno equívoco administrativo, alguém não anotou o que tinha que anotar, minha mulher deve estar dormindo um sono bem tranquilo num desses quartos de primeiro mundo, hospital bom, ar-condicionado e tevê de plasma, e o moço foi tão prestativo, deve mesmo ser novo, nunca tinha visto ele por aqui, bem diferente da recepcionista de cara azeda e do segurança que pensa que é polícia, só porque veste aquela farda ridícula e tem um cassetete, senta em cima dessa merda, seu trouxa. Se eu não me escondo no banheiro até terminar o turno dele tinha me posto para fora de novo, recalcado, pensa que é dono, não ganha salário como eu? Não vou incomodar a polícia, não. Amanhã volto e resolvo tudo isso, nem que tenha que falar com o administrador do hospital. Quem fez essa confusão toda vai se ver com ele. Me dá um copinho de água e um comprimido, moço, a dor de cabeça está um inferno. Daí vou embora. É uma longa caminhada até em casa, não posso gastar esse dinheirinho do táxi, amanhã vou precisar. Vou em casa, troco a roupa, tomo um café com um pedaço de pão. Preciso procurar uma foto dela para mostrar aqui, nunca sei onde elas estão guardadas.
Vou ter que revirar tudo para achar. Hoje não vai dar. Preciso dormir um pouco. Não vou nem terminar a leitura do Tchekhov.
Amanhã acordo cedo. Tenho um compromisso médico.
Minha mulher necessita fazer uma pequena cirurgia, procedimento simples, um breve intervalo na rotina.

***

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