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sexta-feira, 29 de julho de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 2 - Alexandre Boeira

Como já eram quase cinco da tarde, Brasil aproveitou que estava no centro para passar em casa antes de voltar à Delegacia. A 14ª DP ficava longe pra cacete, ou como a Delegada Hollanda dizia quando Brasil justificava pela distância algum atraso, era ele quem morava longe pra cacete.
Não era da 14ª a jurisdição sobre o centro histórico, mas agora a corregedoria resolvera distribuir os casos conforme a especialização disposta no Programa de Equalização da Massa de Inquéritos, nome pomposo que um burocrata encontrou para formular meia dúzia de proposições genéricas que davam o pretexto e o poder ao Chefe de Policia para redistribuir os casos mais fodidos, segundo as pressões que recebia dos delegados mais antigos. Era um salvo conduto para os jurássicos botarem tudo que é merda no rabo da gurizada nova. E eles botavam. Ah botavam. O escritório do advogado era área do Delegado Palhares, mas Palhares era da turma antiga, colega de concurso do Chefe de Polícia, e a delegada Hollanda era recém chegada. Assim, nem bem Brasil tinha acabado de dar um prensa no Pernoca, traveco informante dele para os casos de tráfico na região da Vila Areia, do aeroporto e arredores e o celular tocara. Ele não estranhou quando a delegada deu o endereço do Edifício Medeiros e mandou ele fosse direto pra lá.
Se a Delegada Hollanda era a última da fila, Brasil estava abaixo, era o corinho da última da fila. Tudo com era com ele na 14ª DP, mas não reclamava. Fazia tudo, e fazer tudo incluía ter sempre a disposição as chaves da única viatura que ainda funcionava naquela espelunca, um Ford Focus discreto, sem a pintura horrorosa imposta pela Secretaria de Segurança, porém dotada do Kojak giroflex, este sim, bastante útil para dar uma passadinha rápida em casa na hora do rush. Além disso, como estava sempre em investigação, podia levar a viatura para casa de noite, bem como, valer-se dela pela manhã para deixar o piá na escolinha a caminho do trabalho. Tudo bem que todos os carros discretos eram da mesma marca e modelo, coisa de licitação, mas além dos vagabundos pouca gente sabia disso. Não serviam de nada para campanas ou mesmo para aproximação da boca-de-fumo sem o vapor dedurar, mas não dava ovo nenhum para levar as crianças ao colégio ou fazer o súper. Entrou no carro, botou o kojak no teto, ligou as luzes e a sirene e saiu cantando pneu. Como adorava isso. O trânsito já estava uma bosta e nem eram seis horas.

Em quinze minutos chegou em casa. Tomou cuidado para desligar a sirene e as luzes duas quadras antes. Não podia vacilar com o Juarez. Desde que mandou uns amiguinhos do Pernoca fazerem o serviço nas ferramentas do aposentado ele tava de olho. Se chegasse em casa fazendo esparro era certo que Juarez ia fazer alguma queixa do vizinho policial que tinha privilégios. Não estava arrependido. Juarez mereceu. Ninguém mandou ele ter essa mania de obra. Ficar fazendo barulho com serra-fita desde as 6 da manhã? Até em domingo? Se queria tanto ser pedreiro que fosse procurar emprego em empreiteira e não ficar remendando a casa toda.
Entrou em casa e foi logo abrindo a geladeira. Antes mesmo de pegar a cerveja, Martha chegou pelas costas.
- Chegou cedo hoje, amor.
- Não cheguei ainda. To só de passagem. Vim só trocar de camisa e já vou voltar pra DP. Hoje vou chegar tarde. Tem um caso novo e to cheio de coisa pra ler.
Mostrou a pen-drive enquanto falava, só de sacanagem. Martha não entendia nada de informática e jamais compreenderia que dentro daquela canetinha poderiam conviver arquivos com páginas e páginas de texto, além das fotos da última putaria que ele fez quando ela chutou o balde, disse que ia embora e passou uma semana na casa da mãe. Se ela não tivesse levado o Pedrinho junto precisaria bem mais que uma semana de gandaia para Brasil se encher de saudades e passar na casa da sogra com cara de arrependido para resgatar a família. Pedro Yarlei Albuquerque Brasil era o xodó do pai. Nasceu em dezembro de 2006, dias depois do homônimo destroçar o Barcelona do outro lado do mundo. O Homônimo, ah o homônimo. Pedro Iarley Lima Dantas, mais conhecido apenas como Iarley, cearense de Quixeramobim, fez fama no Boca e no Inter. A homenagem era bem mais que justa. E também, no fim, Martha nem deu bola ao acréscimo no nome. Haviam combinado que seria Pedro e isso, pelo menos isso, Brasil cumpriu.
- Não vai me dizer que é aquele caso do advogado viado que deu na tv?
- Esse mesmo. Homicídio. E pelo que sei, o cara não era viado.
- Como não, Antônio? Advogar só pra homem? Isso pra mim é coisa de viado. Pelo menos passa no super na volta. Ta faltando tudo em casa, nem sei o que vou fazer de janta pro Pedrinho. E compra também absorvente porque to naqueles dias e não tenho nada em casa.
Não sabia que Martha tinha algum interesse nessa área. De onde ela sabia que o Dr. Edmílson só advogava pro time masculino? Não lembrava dessa informação já ter saído na imprensa. O comentário acendeu a luz vermelha na cabeça do Inspetor Brasil. Melhor andar na linha. Ela só podia ter conversado com alguma advogada que perdeu ação para o falecido. Já estiveram a ponto de acabar com o casamento umas vinte vezes, mas consulta com advogada era novidade. Foi a última informação, porém, que o fez decidir que trabalharia até mais tarde mesmo. Como sempre, poderia reclamar, dizer que quando namorados não tinha essa frescura, mas, na verdade, ele também ficava sem vontade quando Martha estava em tal estado.
- Tudo bem. Compro tudo. Manda a lista por mensagem no celular.
 Trocou a camisa e saiu tomando a cerveja no gargalo da garrafa, não sem antes dar um beijo protocolar na esposa. No caminho do carro, passou por Juarez que estava à espreita no muro. Ele sempre está.
- Boa tarde, seu Brasil. Chegando cedo em casa?
- Que nada, seu Juarez, não tenho essa moleza, não sou aposentado. Estava aqui perto e passei para ver a Martha, só isso.
- Alguma notícia das minhas ferramentas furtadas? A polícia deveria investigar isso melhor.
- Não é da minha jurisdição, seu Juarez. Não é da minha jurisdição.
Quando chegou na DP, ainda estava tão puto que resolveu passar no boteco do portuga para outra cerveja antes de entrar no prédio. Era melhor encarar a Delegada Hollanda mais perto da hora de ela sair, caso contrário a chefe ia querer muita explicação e hoje ele simplesmente não estava com vontade de dar mais explicações das que já dera em casa.
O Bar e Armazém do Porto ficava bem ao lado da delegacia. A cerveja era gelada e o bolinho de batata era honesto. Logo, era mais fácil encontrar os policiais no boteco do que na repartição. Ao vê-lo chegar, Manoel já pegou uma Patrícia da geladeira, colocou no balcão ao lado do copo que passou no pano que tinha uma relação simbiótica com seu antebraço. Pronto, finalmente Brasil estava em casa.
Manoel era um bom sujeito, sabia servir bem a freguesia e nunca cobrava as dívidas na frente de terceiros. Sempre aceitava um cheque para a data do pagamento e, mesmo assim, no mais das vezes em valor inferior ao saldo pendurado. Brasil cumprimentou o portuga e sorriu para si mesmo ao observar que, mais uma vez, somente quando ele encostou o dedo no copo de cerveja é que a caneta viajou da orelha ao caderninho, guiada pelas hábeis mãos do bodegueiro, para anotar mais um débito pendurado. Produto cobrado, somente depois de tocado. A única coisa estranha era o senso de humor dele. Apurado demais para um imigrante Lusitano. Manoel tirava sarro de todo mundo. Policial, freguês, fornecedor, ninguém escapava.
- Grande Brasil. Veio visitar as Nações Unidas?
Era assim que Manoel chamava a 14ª DP, pois além dele, Brasil, da Delegada Hollanda, tinha também a Dona Quênia, auxiliar de limpeza da prestadora de serviços terceirizada e o Togo. Togo era o apelido de Antônio Gonçalves da Silva, nome de batismo do neguinho que lavava carros na frente da delegacia. Brasil mesmo havia apreendido Togo puxando um carro lá nas bandas do Shopping. Ficou com pena do guri de cor indefinida e cara de fome. Claro, meteu uns cascudos nele antes, primeiro a obrigação, mas depois deu uma aliviada quando depôs no processo dele lá no JIJ. O guri pegou um PSC leve que por sugestão de Brasil à servidora do Serviço Social Judiciário cumpriu lá na DP mesmo. Foi tratado como filho pela Dona Quênia e foi ficando.
Manoel também dizia que a hierarquia da delegacia era conforme o IDH do país. Hollanda manda no Brasil, o Brasil manda no Quênia e Quênia manda no Togo. Tá, tinha também o Mello, mas não existe piada perfeita. Ademais, o Mello pouco ia ao trabalho e não servia nem pra fazer parte da piada, pois não tinha nome de país e quem mandava nele era o Turco, bicheiro da área.
Brasil olhou para o celular e viu que Martha já tinha mandado a mensagem.  De computador ela não sabia nada, mas no celular ela era fera.
- Ô vascaíno, anota aí a lista da patroa: feijão, arroz, cebola, batata, leite em pó, café, pão de sanduíche e um Módis. Bota tudo naqueles saquinhos do Zaffari que te dei aí e põe na conta. Na saída eu levo.
- Podexá seu Brasil, já estou a anotar tudinho. Dessa vez as sacolinhas tão novinhas. Lisinhas e branquinhas. Guardei elas na gaveta, como o senhor mandou. Dona Martha nem vai notar que o senhor fez a feira aqui no meu estabelecimento.
- E bota tudo separado. Faz que nem no súper. Tu sabe que a patroa fica puta quando eu compro fiado aqui, né?
- Sim senhor. Tô sabendo. A mulher é chique. Gosta só de produto de marca boa, pesado em balança digital e com prazo de validade na etiqueta. Dona Martha é bacana, seu Brasil. O senhor é um homem de sorte. Podexá. Podexá.
Terminou de beber a Patrícia. Bateu a mão espalmada no balcão duas vezes, acenou para Manoel e foi encarar a delegada. Nem bem colocou os pés na Delegacia, Togo veio correndo ao seu encontro.
- Brasil, Brasil. Onde tu tava? A Doutora quer falar contigo. Tá te esperando na sala.
Quando entrou no gabinete da delegada, a bolsa não estava pendurada. Já estava sobre a mesa, ao lado da pasta do notebook. Os inquéritos já estavam arrumados em pilhas simétricas bem no canto esquerdo, o computador estava desligado e as canetas descansavam no porta-objetos de couro.  Sem dúvida, Hollanda já estava pronta para sair. Percebendo que estava em vantagem, Brasil arriscou o blefe.
- Desculpe o atraso Doutora. Acontece que a coisa lá no centro demorou mais do que eu imaginava. A cena do crime estava uma bagunça. A secretária, imagina a Doutora, estava puteando todo mundo. Xingava a tudo e a todos. Nunca ouvi tanto palavrão. Acho que era de nervoso, a coitada gostava do patrão. Se a doutora tiver um tempinho posso lhe colocar a par de tudo o que apurei. São muitas informações. O caso vai ser complicado.
O suspiro da jovem delegada denunciou, ele estava livre dela, ao menos por hoje. Mesmo assim, não escapou da carraspana.
- Onde tu andava Brasil? Porque não atende a porra do celular? Hoje não vai dar. To em cima da hora. Preciso passar no supermercado antes de ir para casa. Termina o relatório da apreensão lá no aeroporto e manda logo a coisa para o laudo definitivo de constatação da substância. Se essa coisa fica aqui na Delegacia mais um dia vai acabar sumindo. São quarenta e cinco quilos Brasil, quarenta e cinco quilos. Se o Turco sabe que tem isso aqui dentro quem vai ser assaltado somos nós.
- Tá bom Dra. Sim senhora. Hoje mesmo eu termino o relatório e amanhã levo tudo pro IGP. Se a senhora for ao Zaffari, pode trazer umas sacolas plásticas pra mim?
- Trago sim. Fica tranquilo. Depois tu pegas comigo, na hora que me trouxeres o relatório para assinar. Boa noite.
Já estava fora do gabinete quando gritou a última frase, sem sequer virar-se para o inspetor.
- E vê se atende a porra do celular que o plantão é nosso hoje. Se vai ficar de frescura eu tiro o funcional da tua mão e tu fica sem. Pensa que eu não sei que o teu tá cortado?
Passavam das sete e meia da noite quando finalmente sentou à sua mesa na repartição. Ficou feliz em ter se livrado da Delegada. Não estava nem um pouco com vontade de falar sobre o caso do advogado. Não tinha muito a dizer. A linha de investigação escolhida era fraca. Logo ele, um homem de ação, fazer investigação lendo historinha escrita pelo morto? Acima de tudo, ficou feliz em não ter de optar entre contar ou omitir o detalhe do paudurismo do cadáver. Ainda assim, tinha que começar a ler aquela merda.
 Ligou o computador, pegou o pen-drive do bolso e colocou na primeira entrada USB. Deu um clique no teclado e apareceram várias pastinhas desenhadas na tela. Cada uma era de um cliente do Doutor Edmilson. Os suspeitos estavam ali, enfileirados na frente dele, igual quando apresentados para a recunha da vítima. A merda é que, olhando assim, eram mesmo todos iguais.  Escolheu um dos arquivos ao acaso, clicou duas vezes no nome. A pasta Guinther era a primeira. Antes de começar o trabalho que felizmente lhe afastaria por alguns instantes do tal relatório da apreensão, percebendo que Togo estava na sala, a alguns metros de respeitosa distância, feito um cachorro que olhava o dono, Brasil disparou:
- Se vai ficar pentelhando é melhor fazer alguma coisa útil, vai lá no portuga e trás uma Patrícia gelada e um copo.
                           Togo foi num pé e voltou no outro. Trouxe duas cervejas e dois copos. Guri abusado.

ESPAÇO BERGMAN


O Espaço Bergman é mobile...


quarta-feira, 27 de julho de 2011

CONTO: DUAS LARANJAS NA MÃO E UMA VOANDO - Mário Garrastazu Médici


     
     Antes, quando o pai e o Tonho se postavam nos degraus da ponte sobre o  Dilúvio, apenas as cabeças de fora observando cada movimento - especialmente o brilho das esparsas moedas que surgiam dos vidros dos automóveis - o Maninho errava duas em cada cinco manobras. Nem sempre deixava as bolinhas ou gravetos tombarem no asfalto, mas percebia a imperfeição na execução, o titubeio na retomada, o tremor na agilidade das mãos. O irmão e o pai, olhos ávidos pela próxima rodada de pedra ou de cana, esquadrinhavam cada movimento em falso, e a reprimenda vinha. Na hora, dardos inflamados nos olhos e negativas de cabeça. Ou depois, orelhas quase arrancadas pelo pai. Pior, o desconsolo raivoso no semblante do irmão, que lhe ensinara toda a técnica.

     O irmão mais velho. O Tonho. Shows diários nos semáforos da Ipiranga desde os cinco anos, sem nunca perder a mão. Verdadeiro artista da faixa de segurança, que lhe ensinara generosamente, sem esconder pulo, passo, sequer bocejo do gato, os malabarismos que garantiam pão - e circo, embora de horrores, por vezes - à família exclusivamente masculina. Além deles, havia o temporão, o Pedrinho, recém iniciado em seus primeiros passos tímidos nas calçadas, engatinhando em seu estágio, o esmolar puro e duro com olhos lacrimejantes.

     Mãe não havia, houvera nunca no olhar do Maninho.

     Mas o Tonho. O verdadeiro artista. O Tonho ficara velho demais para as ruas. Não por qualquer decréscimo na habilidade, o bicho era um avião com mãos e pés, o rei do farol vermelho e dos campinhos da vila. Porém, o pessoal dos carros tinha muito medo de guri grande. E o Tonho já era um guri grande, preto e grande, grande e feio, principalmente feio. O cabelo ruim e o nariz achatado demais. Os dentes tortos e quebrados. Os olhos amarelados e sem vida, no rosto escuro e assustador. O Tonho já não dava mais para o trabalho da sinaleira. Passara a ensinar alguns rudimentos ao caçula, e acompanhá-lo por outras esquinas da cidade junto com o pai, Stromboli da própria prole.

     Assim, o Maninho ficara solto nas duas últimas semanas, por sua conta e risco. Pensava se chamar João, mas nunca ouvira nome qualquer na boca dos seus. Tivesse mãe, talvez descobrisse a textura do nome próprio chamado na voz materna. Não era o caso, o Maninho sequer era chamado, apenas empurrado ou arrastado de um lado para o outro. Só que agora estava sozinho na avenida, o pai e o Tonho longe com o caçula, o sinal já fechando de novo, deixa eu ir lá com as minhas laranjas, eles vão ver que espetáculo.

     Começara com as bolas amarelas, velhas e murchadas, de um esporte que  sequer sonhava como se jogasse, mas que lhe diziam chamar tênis, como o calçado rasgado que levava nos pés cascudos. Tivera de abandonar, por mais que cuidasse uma sempre se perdia ou se estragava no vaivém do trânsito, ou caía no riacho, ainda era principiante e o pai e o Tonho não tinham como repor. Passara aos gravetos, a trinca de gravetos cuidadosamente desbastados com o pequenino canivete para deixá-los todos com o mesmo peso  e sem felpa a atrapalhar o manuseio. Os gravetos, contudo, não se prestavam a um grande conjunto de manobras, nem tinham o apelo de esferas coloridas girando no sol, também foram deixados de lado. Tentara  limões, mas o tamanhinho dos que conseguia descaminhar no fim da feira proibia os voos mais elaborados que o Maninho já criava sozinho. Elegera, por fim, as laranjas. As laranjas tinham o volume e a consistência exatos para suas necessidades, e eram fáceis de conseguir em qualquer balaio de xepa, no mais das vezes sequer precisava pechinchar com suas parcas moedinhas. Um sorriso mais terno para o feirante, as ferramentas de trabalho estavam garantidas.

     Além disso, tinha uma refeição a salvo quando a hora do pico terminava. Sentava com a minúscula lâmina em frente ao posto de gasolina da esquina e atacava suas laranjas quando a fome batia no fim do expediente. Gostava de descascar com paciência, gerando espirais perfeitas com as quais se perdia brincando por breves segundos, imperfeito retorno à infância que não conhecera. Depois, tirava as tampinhas, devorava as três laranjas lembrando do dia inteiro sem  merenda e se punha  a esperar o pai e o mano.  Noutros dias, porém, a fome se deixava sentir antes que tivesse tempo para as esculturas, e fazia dois cortes transversais na fruta, desdobrando rapidamente quatro gomos, devorados até o amargor da parte branca da casca.

     Menos ontem, noite já alta.

     Ontem não resistira a uma vontade de duas semanas, das duas semanas de independência de pai e  irmão, e fora pela transversal da grande avenida em direção ao pé-sujo com o cartaz escrito a giz na frente. Depositara seu butim no balcão e pedira (sem suspeitar querer exatamente o menu descrito no cartaz, no código incompreensível das letras desconhecidas) o bife com batata frita. Bife, moço. Um bife com batata frita. Eram quase dez da noite, fazia o calor da Porto Alegre de janeiro, e as laranjas tinham estragado. Não comera nada o dia inteiro. Então, consumou em cinco minutos, olhos assustados numa mesa suja de canto, o festim. Um verdadeiro bife, mal passado, acompanhado de batatas úmidas de gordura. E adorou.

     Pela manhã, as sensações experimentadas no banquete do boteco (incluindo o gelado de uma garrafa de coca-cola e o doce da balinha de banana que o moço lhe dera de troco) tinham dado lugar a um gosto que o Maninho não sabia explicar. Em parte pelas dores no corpinho mirrado, primeira noite dormida ao relento, não tinha como voltar para casa sem a féria do dia. Ia apanhar do pai, certo, mas nada ia se comparar à pancada do olhar baço e acusador do Tonho. Mas isso não era o pior. O pior, o que trazia pra boca o gosto de um azedo quente pelo sol que já ia a pino, era estar de novo sozinho. Não havia ninguém para fiscalizar suas manobras, que por isso sairiam melhores. Ninguém para lhe arrastar pelas orelhas pela calçada. Ninguém para lhe desmontar com uma só mirada. Não havia ninguém.

     Até o último segundo antes de pegar no sono, na aspereza sufocante do canto de marquise que elegera para dormir, o Maninho tivera certeza de que o pai e o Tonho vinham lhe buscar, como em todos os dias. Nem que fosse pelas moedas. Pelo barato da próxima pedra, do próximo gole. Pelo prazer do puxão de orelhas.

      Não viera ninguém dessa vez.

        O calor já vinha forte mesmo antes de abrirem as lojas e os carros inundarem a avenida. Ainda assim ele começou cedinho no batente, laranjas ao alto,  disposto a triplicar os ganhos do dia, hoje vão ser manobras que nunca tentei antes,  erro zero, vai ser bonito de ver as caras espantadas dos tios e das tias nos carros, e as moedas, ah, as moedas. Ia chegar cheio de moedas em casa hoje, talvez até com um saco de cacetinhos e uma garrafa de cachaça pro pessoal.

         Então o povo colorido chegou.

      Primeiro, pela tinta nos rostos, imaginou serem do tipo de palhaço com malabares de fogo,  já tinha visto um ou dois assim em outros cruzamentos, o rastro luminoso desenhando bonito o céu entardecido. Entretanto, era de manhã cedo, e além disso não eram um ou dois, mas uma porção, um bando, crianças apenas um pouco mais velhas que ele, com as roupas curtas cobertas por manchas alegres. Roubando os seus carros, os seus vidros escuros, as moedas que ia levar de troféu sorridente para o pai e o mano. Sequer tentava se aproximar dos carros. O sorriso (especialmente dos tios sozinhos) para as meninas desautorizava qualquer competição. As caixinhas de papel se abarrotavam a cada piscar do sinal, nunca tinha visto tanta facilidade, até dinheiro de papel o pessoal estava distribuindo hoje.

     Não para ele.

     Ainda tivera ânimo de perguntar ao guri do jornal quem era essa gente, de onde vinham, por que logo hoje, sem sequer ter tempo de demonstrar espanto ao ouvir que não, não era gente, eram bichos.

     Deixou as laranjas enfileiradas no cordão da calçada, dirigiu um último olhar ao cruzamento tão familiar, como que acenando um adeus ao pai e aos irmãos, que adivinhava não mais encontrar, e foi embora, passinho apertado, tragado pelo oceano que principiava na rua lateral.
    
     Decidira largar de ser a laranja da mão, presa com pulso firme até o último segundo, para se tornar a laranja que voa solta, chega ao ponto mais alto que consegue, e só então, depois de girar um sem-número de vezes sobre si mesma, cai.


* * *

sexta-feira, 22 de julho de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 1 - Alexandre Boeira

Hoje o De Quem São Estes Contos? inaugura uma nova seção, uma espécie de folhetim, possivelmente hebdomadário, a cargo de Alexandre Boeira. Eventualmente será solicitada a participação dos leitores para o desfecho de alguma das histórias. Boas leituras!



Doutor Edmílson não tinha nada de original. Era cópia mesmo. Por ironia deliberada, sua concepção nasceu de Mort. Sim, por livre inspiração em Ed Mort, Carlos Felipe de Araújo Silva tornou-se Doutor Edmílson, advogado especializado em divórcios, mais que especializado, pois apenas defendia homens.

Quando perguntado, justificava:

- Preciso entender meus clientes.

Tornou-se advogado porque não se encontram mais hoje em dia bons cursos de detetive particular por correspondência. Aliás, como ele mesmo dizia, hoje em dia não existe mais sequer correspondência.

- A única coisa que vem pelo correio são as contas e as multas de trânsito.

Agora, faculdade de direito, essa sim, tem em qualquer lugar. Fez o curso à distância. Não porque não queria comparecer as aulas, mas porque lhe agradava saber que poderia conseguir um diploma, mesmo mantendo distância da faculdade. Questão de princípios.

Doutor Edmílson instalou seu escritório em um tradicional prédio do centro histórico. Edifício antigo, elevador com ascensorista, manivela dourada, porta pantográfica e tudo. Coisa de respeito.

Costumava ir pela manhã ao escritório e a tarde reservava para o Foro. Era metódico. Se algum juiz marcasse audiência no período da manhã, substabelecia sem reservas ou renunciava à causa.

Seu escritório é bem decorado, sala, ante-sala, sala de reuniões, café, copiadora e computadores, vários computadores. As máquinas emprestam um ar de seriedade ao ambiente, além disso, confessava:

- São mais baratos que arranjos ou enfeites de mesa. Ocupam o mesmo espaço e ainda possuem alguma utilidade.

Os negócios iam bem. Advogado especializado em homens era coisa rara. Ele tinha encontrado seu nicho de mercado. Tudo bem que a causa feminina é mais simpática, tem até lei especial defendendo “o outro lado” como costumava chamar. Claro, era mais fácil vencer defendendo o lado feminino, mas a concorrência desleal e a ganância desenfreada o afastaram. Aos colegas que se gabavam de fazer fortunas defendendo as mulheres largadas em rumorosos divórcios ele simplesmente dizia:

- Não te esqueças que é o meu cliente que também paga os teus honorários.

Tinha também uma secretária, Dona Nívea. Embora trabalhasse apenas a visão masculina da separação e do divórcio, sua secretária era mulher. Dona Nívea tinha idade indefinida, mas ainda dava um caldo, e, às vezes, dava mesmo. Além disso, ninguém tinha um repertório de palavrões tão grande quanto o da Dona Nívea. E ela sabia quando usar, isso valoriza uma secretária. O advogado não pode mandar o cliente chato se fuder, mas a Dona Nívea podia, e mandava.

Não era homem de muitos vícios. Fumava um pouco, bebia mais um tanto. Maconha só na juventude, mas não tinha gostado. Tinha algo, porém, que arranhava um pouco a ética, mesmo sua ética particular. Doutor Edmílson se apegava, se apegava muito. Nutria carinho, compaixão, talvez até amor, mas principalmente, tesão. Edmílson tinha tesão pelas ex-mulheres de seus clientes. Cada injustiça que eles as acusavam, cada insensibilidade delas, as traições, os desprezos, tudo fazia ele ter vontade de conhecer aquela megera. Não raro, conhecia. Depois da audiência, a pretexto de entabular um acordo, marcava um café com a advogada da parte contrária. Normalmente era uma advogada.

Doutor Edmílson sabia. A relação entre o advogado e o cliente homem é muito diferente da relação entra a advogada e a sua cliente. Não raro elas ficam amigas, discutem detalhes da causa, expõem estratégias e, sempre, mas sempre, enquanto o homem quer distância, a mulher quer acompanhar cada detalhe do andamento do processo. Assim, normalmente compareciam ao café o Doutor Edmílson, a advogada e a mulher de seu cliente. E em tais ocasiões, Edmílson era o homem perfeito. Culto, compreensivo, encantador. Poucos acordos eram fechados, mas muitas ex-mulheres saíam de lá sabendo que seriam comidas pelo advogado do ex-marido. E eram. E gostavam.

Edmílson, a sua maneira, era também bastante organizado. Tinha anotada a história de todos os clientes. Isso mesmo, a história. Nada de datas, documentos, prazos, cópias de petições ou outros. Isso era coisa para guardar na cabeça. Na memória do computador de sua mesa, protegidas pela senha COLORADO2006, estavam suas impressões em prosa sobre cada homem que defendeu nos tribunais. A narrativa de suas histórias de vida, do fracasso do casamento, suas amantes e alguns comentários do próprio Edmílson. Tudo parecia sem importância para a causa, mas não para o inspetor Brasil. Afinal de contas, o homem estava morto, sujando o tapete da sala de reuniões com o sangue que jorrara pelo buraco bem no centro da testa.

Brasil não era de se impressionar, 18 anos de polícia fazem isso, mas gostou do tiro. Buraco pequeno, talvez de 22, no máximo uma .32, provavelmente Smith & Wesson, pois não transfixou nem causou maiores danos externos. Circunferência perfeita, nada de elipse. A trajetória do tiro deve ter sido reta mesmo, olhando nos olhos. As bordas discretamente sombreadas, uma leve tatuagem. Sem a marca Pupper-Wertgaartner e sem chamuscamento. A distância do tiro era maior que a do braço do doutor ali deitado. Suicídio estava descartado.

Edmílson tinha dívidas. Qualquer um tem, mas eram dívidas escorreitas, institucionais, com SPC e tudo. O gerente do Banrisul, a Mastercard do Brasil ou a direção da Vivo não eram suspeitos. Os suspeitos eram os clientes. Brasil não tinha saída, precisava ler toda aquela tralha.


                         Antes de sair, levando consigo a pen-drive com todos os arquivos do computador do Doutor Edmílson, deu uma última olhada no corpo. Já vira de tudo, mas ainda assim achou estranho. Tinha de perguntar para a Lucinha do DML. Morto fica de pau duro?

quarta-feira, 20 de julho de 2011

CONTO: A DAMA DO LOTAÇÃO - Nelson Rodrigues

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
 — Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice.  Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

A SUSPEITA
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos.  Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!

A CERTEZA
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!

A DAMA DO LOTAÇÃO
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.

O DEFUNTO
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

É SÓ IMAGEM! POR M@TIELLO

AREIA...CONCHA...PRAIA...DE ITAPUÃ! - Miguel Matiello

quinta-feira, 14 de julho de 2011

CONTO: FELIZ ANO NOVO - Rubem Fonseca

Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.
Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.
Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
Ela tava nua, disse Pereba.
Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.
Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.
Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?
Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
Posso ver o material?, disse Zequinha.
Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
Já, eu disse, está lá em cima.
A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
É antiga mas não falha, eu disse.
Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.
Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
Cara importante faz o que quer, eu disse.
É verdade, disse Zequinha.
Ficamos calados, fumando.
Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
Que casa? Você tem alguma em vista?
Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
Coloquei a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.
Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.
Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
Crianças?
Estão em Cabo Frio, com os tios.
Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
Gonçalves?, disse Pereba.
É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
Inocêncio, amarra os barbados.
Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.
Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba desceu as escadas sozinho.
Cadê as mulheres?, eu disse.
Engrossaram e eu tive que botar respeito.
Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.
Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
Como é seu nome?
Maurício, ele disse.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.
Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
E você... Inocêncio?
Acho que vou papar aquela moreninha.
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.
Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

É SÓ IMAGEM! POR M@TIELLO

EXIBIÇÃO - Miguel Matiello

ESPAÇO BERGMAN

Assunto: Carta a Mino Carta
Prezado Mino,
Faz muito que admiro e acompanho o teu trabalho. Penso que desde a época em que Veja era leitura e expressava ideias que mereciam ser lidas. Bem, isso já vai bem longe.
Acompanhei, desde aqui da Capital dos Gaúchos, a ousada, mas a final frustrada, iniciativa jornalística do A República. E por aí vamos, eu quase nos 55 anos de existência.
Cumpre ressaltar, igualmente, que os teus combativos artigos, espada solitária a esgrimir ao lado das boas ideias, em face de uma mídia comprometida com interesses um tanto escusos, usualmente utilizei, ao longos dos anos,  como supedâneo e escudo contra o ideário retrógrado e reacionário prevalente nestas paragens.
Dito isso, confesso-te que me fez cair "os butiá dos bolso" essa tua insistência com o caso Battisti. Sempre tive para mim que, se um argumento tiver que ser repetido "ad nauseam", como no caso, algo não vai bem e é do lado do papagaio...
Pois bem. Partindo de ti a crítica, com todo o crédito que possuis, dispus-me a ler mais e atentamente sobre o caso. Mas, desde logo, intrigado com a tua enérgica postura.
De fato, diferentemente de ti, tenho o maior apreço e respeito, inclusive no campo das ideias jurídicas, por Sua Excelência o Governador Tarso Genro. Aliás, portador de sólido e invejável saber jurídico.
Indaguei aos meus botões que, assim como os teus, são muito bons de diálogo, o porquê do Tarso, com toda a sua bagagem jurídica, embarcar nessa, digamos apenas pelo sabor do argumento, "canoa furada". Meus botões silenciaram.
Com o tempo, fui colhendo aqui e acolá que as tuas razões poderiam não ser as melhores. E, o que era dúvida, passou à convicção. Com efeito, no final de 2010, ou no início de 2011, um grupo de notáveis constitucionalistas pátrios, os melhores, os quais aprendi admirar ao tempo ainda da universidade, lançou um manifesto exortando o STF a decidir pela permanência de Battisti, entendimento que, ao fim, veio a prevalecer, sintetizado na afirmação da soberania pátria.
Não é pouca coisa, Mino.
Nessas circunstâncias, Mino, não entendo a tua insistência. E entendo menos ainda quando, além de insistir e investir contra argumentos técnicos, passas a ridicularizar pessoas honradas.
Mino, este é um caminho tortuoso, para não dizer obscuro. Isso sem considerar a inaceitável arrogância de uma decadente Itália.
Não te acompanharei  neste teu - para mim inaudito - caminhar.
Ainda assim, minha admiração pela tua história, ousando recomendar uma nova consulta aos teus botões e à tua Olivetti.


Atte.,
Paulo de A. Bergman.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

ESPAÇO BERGMAN

Vamo que vamo! Findi de derrubar pitonisa... Previsão é que nem onda no mar: vai e volta... Os 3x0 de quarta, confirmados apenas em grau, voltaram com força total no findi, sob a forma de 2x0... O futebol imita a vida, ao encerrar verdades definitivas a cada noventa minutos...

sexta-feira, 8 de julho de 2011

CONTO: WINDOWS1930 - Mário Garrastazu Médici


O Moreira se gabava de ter inventado a expressão.

Janelear.

E janeleava mesmo, sem pejo nem escrúpulo, sem dó nem piedade. Funcionário público noviço, de um tempo bem anterior ao do planejamento estratégico, da qualidade total, das metas e avaliações de desempenho, deixava o paletó (sempre claro: ora branco, ora palha, ora cru, sempre indelevelmente claro) no encosto da cadeira, ao melhor estilo barnabé semi-aposentado, e saía a flanar. Num dia às onze da manhã, noutro às quatro da tarde – nunca ao meio-dia, hora sagrada, que os almoços da Dona Carminha eram imperdíveis.

O pai também almoçava em casa diariamente, trabalhavam no mesmo prédio, porém em repartições diferentes. O velho Moreira sempre dizia que isso conferia certo ar de respeitabilidade ao início da carreira do único filho, não ficar sob as asas de um protetor. Na prática, no entanto, todos no setor sabiam que o garotão era prole de peixe grande, ninguém se animava a relatar suas escapadas, e ainda tinham de dividir o serviço acumulado. Pois o Moreira menor não deixava terminar dia sem descer as escadas da Junta Comercial, apanhar o bonde que passava em frente ao enorme portão de ferro e ir conferir suas janelas. As já visitadas, que ele mantinha numa planilha preenchida com rigor de recenseador. E as virgens, escolhidas ao acaso conforme as paradas do bonde, em data de iniciar tarefa nova.

Hoje era dia de revisitar a casa branca da esquina da Ladeira. Janela simples, abertura austera, pintada de marrom como as portas, uma entre diversas casas irmãs. Com a pombinha ruiva nos seus dezesseis anos sempre com ar sonhador à espreita. Era uma data especial, dia de mudar de fase. Iniciar o janelear dois. Ainda não contei que o Moreira tinha um método infalível, em três fases, para capturar os olhares das moças (às vezes nem tão moças, às vezes não só os olhares) que se deixavam ficar debruçadas nas janelas da cidade, como monalisas enigmáticas em suas singelas molduras.

O janelear um, primeiro estágio de seu projeto de sedução, após escolhido e bem avaliado o alvo - da segurança dos bancos de madeira do bonde -, consistia em uma caminhada na calçada oposta à janela em vista, pé depois de pé, na marcha lentíssima de quem não quer chegar a lugar algum, mas está em missão. O Moreira ia reto e firme, olhando sempre para frente, o chapéu quase encobrindo o rosto jovem e bonito. E nem nada para as janelas lá do outro lado. No entanto, quase no final da rua, um segundo antes de dobrar a esquina, zap, uma guinada de pescoço felina, uma mirada fulminante e doce para a janela. Quase sempre surpreendia em si o par de olhos femininos, que baixavam imediatamente.

Assim tinha sido com a ruiva. Uma, duas, três vezes. Cinco.

A quinta vez invariavelmente conduzia ao janelear dois. O mesmo desfile na calçada contrária, em idêntica velocidade de cruzeiro. Agora com o olhar confiante, (doce) e rapace dirigido ostensivamente à presa, o chapéu jogado para trás deixando ver a expressão mais sedutora que conseguia alinhar. O abano discreto e o beijo soprado a cinco passos do fim da rua, dando o tempo exato de a donzela retribuir antes de vê-lo desaparecer na esquina.

Com o sorriso da vitória no rosto.

(Sobre o janelear três, as poucas ocasiões em que o Moreira abandonava a falsa timidez, cruzava a rua e ia ter de bem perto com seu alvo – no pé da janela, no mais das vezes, tratando-se de uma pombinha de família, ou adentrando umbrais, no caso de uma viúva jovem ou de uma teúda e manteúda de coronel, em ruas mais afastadas – não falaremos, por ora).

Na manhã daquele dia, o dia em que daria o segundo passo em direção à ruiva da casa branca, o Moreira pouco falou na mesa do café. A família reunida, nas ritualísticas refeições em conjunto para as quais ninguém podia sequer se atrasar, que dirá faltar, o pai dando algum sermão matinal sobre a importância do trabalho na Junta, talvez uma oportunidade para o menino na subchefia do almoxarifado. A mãe servindo o suco de laranja do céu espremido na hora e alertando para a maravilhosa braciola recheada com toicinho e cenoura do meio-dia. Em ponto. O garoto engolia o suco e o pãozinho com manteiga sem dizer palavra, quando muito um movimento de cabeça. Sempre afirmativo. Sim, iria para mais um dia de trabalho na Junta (mas fugiria para o seu jardim secreto de prazeres tão cedo quanto possível). Sim, se houvesse uma vaga melhor remunerada na subchefia de qualquer repartição, ele aceitaria (desde que pudesse fugir para seu jardim secreto de prazeres). Sim, estaria ao meio-dia sentado comendo braciolas com o delicioso molho escuro e espesso da mãe (na volta do jardim secreto de prazeres).

O Moreirinha só pensava, no entanto, no segundo posterior à descida do bonde. Na casa branca de janelas marrons com a ruiva tímida a lhe esperar. E na casa rosada, mais modesta, com a pintura descascada e janelas cor-de-vinho igualmente descascadas, que lhe era geminada. Como um bônus para suas incursões à esquina da Ladeira e seu desfile na passarela da calçada oposta, o Moreira se via intrigado pelo vulto semi-encoberto pelas pesadas cortinas da casa rosada. Em oposição à miúda da casa branca, o vulto parecia excessivamente volumoso. Embora demonstrasse a mesma constância. Estava sempre lá, como a ruivinha. Sem nunca mostrar muito, sem nunca aparecer completamente, mas sempre lá, senhora de seu caixilho. Com toda a certeza, seguindo cada movimento do cavalheiro de chapéu, o Moreira podia sentir a cada olhar de esguelha. A gorda também lhe esperava.

Enfim, também para essa opulenta dama, por tortuosas vias, hoje seria dia do janelear dois.

Ao depois, na volta para casa, enquanto pensava nos fumegantes bifes enrolados da Dona Carminha, para os quais já estava atrasado cinco minutos (o bonde lento, lento, lento), o Moreira mastigava sua surpresa como tira-gosto. Tinha feito tudo certo. O mesmo ritual de sempre. Se apresentara cedo para o trabalho, chegara mesmo a sentar em sua mesa por alguns instantes. Não deixara o paletó nas costas da cadeira por força de um vento mais fresco e traiçoeiro (teria sido isso?). Se mostrara até mais elegante do que o costume, enfim. Desfilara altivo e garboso, quase um percherão.

Sua surpresa não tinha sido com o beijo soprado sorridentemente pela ruivinha miúda, com esse já contava no alforje de conquistas. Nem com o fato de a geminada gorda finalmente ter aberto as cortinas de par em par, se mostrando em toda sua magnificência, e o encarado fixamente durante todo o trajeto. Ou por ela parecer bem mais velha e desleixada do que o esperado, e extremamente feia, feia, feia. Nem mesmo pelo fato de ser três vezes mais gorda do que a pintara.

Não.

Seu sobressalto fora com a fúria surda estampada em seus olhos, com a desfaçatez com que (em lugar do beijo imaginado) lhe pusera a língua de modo ostensivo e, especialmente, com o sinal vil e enérgico com o dedo médio da mão direita erguido, os demais em descanso, antes de fechar violentamente as cortinas. Um sinal cujo significado integral ele ignorava naqueles inocentes dias, mas para o qual intuía a universalidade e a relevância das janelas abertas.


* * *

ESPAÇO BERGMAN

A cada rodada,
A paixão renasce.
No meu caso, o gremismo.
Vamo, que vamo!
Abaixo a pitonisa blogueira-proprietária.
Bergman.