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sexta-feira, 29 de julho de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 2 - Alexandre Boeira

Como já eram quase cinco da tarde, Brasil aproveitou que estava no centro para passar em casa antes de voltar à Delegacia. A 14ª DP ficava longe pra cacete, ou como a Delegada Hollanda dizia quando Brasil justificava pela distância algum atraso, era ele quem morava longe pra cacete.
Não era da 14ª a jurisdição sobre o centro histórico, mas agora a corregedoria resolvera distribuir os casos conforme a especialização disposta no Programa de Equalização da Massa de Inquéritos, nome pomposo que um burocrata encontrou para formular meia dúzia de proposições genéricas que davam o pretexto e o poder ao Chefe de Policia para redistribuir os casos mais fodidos, segundo as pressões que recebia dos delegados mais antigos. Era um salvo conduto para os jurássicos botarem tudo que é merda no rabo da gurizada nova. E eles botavam. Ah botavam. O escritório do advogado era área do Delegado Palhares, mas Palhares era da turma antiga, colega de concurso do Chefe de Polícia, e a delegada Hollanda era recém chegada. Assim, nem bem Brasil tinha acabado de dar um prensa no Pernoca, traveco informante dele para os casos de tráfico na região da Vila Areia, do aeroporto e arredores e o celular tocara. Ele não estranhou quando a delegada deu o endereço do Edifício Medeiros e mandou ele fosse direto pra lá.
Se a Delegada Hollanda era a última da fila, Brasil estava abaixo, era o corinho da última da fila. Tudo com era com ele na 14ª DP, mas não reclamava. Fazia tudo, e fazer tudo incluía ter sempre a disposição as chaves da única viatura que ainda funcionava naquela espelunca, um Ford Focus discreto, sem a pintura horrorosa imposta pela Secretaria de Segurança, porém dotada do Kojak giroflex, este sim, bastante útil para dar uma passadinha rápida em casa na hora do rush. Além disso, como estava sempre em investigação, podia levar a viatura para casa de noite, bem como, valer-se dela pela manhã para deixar o piá na escolinha a caminho do trabalho. Tudo bem que todos os carros discretos eram da mesma marca e modelo, coisa de licitação, mas além dos vagabundos pouca gente sabia disso. Não serviam de nada para campanas ou mesmo para aproximação da boca-de-fumo sem o vapor dedurar, mas não dava ovo nenhum para levar as crianças ao colégio ou fazer o súper. Entrou no carro, botou o kojak no teto, ligou as luzes e a sirene e saiu cantando pneu. Como adorava isso. O trânsito já estava uma bosta e nem eram seis horas.

Em quinze minutos chegou em casa. Tomou cuidado para desligar a sirene e as luzes duas quadras antes. Não podia vacilar com o Juarez. Desde que mandou uns amiguinhos do Pernoca fazerem o serviço nas ferramentas do aposentado ele tava de olho. Se chegasse em casa fazendo esparro era certo que Juarez ia fazer alguma queixa do vizinho policial que tinha privilégios. Não estava arrependido. Juarez mereceu. Ninguém mandou ele ter essa mania de obra. Ficar fazendo barulho com serra-fita desde as 6 da manhã? Até em domingo? Se queria tanto ser pedreiro que fosse procurar emprego em empreiteira e não ficar remendando a casa toda.
Entrou em casa e foi logo abrindo a geladeira. Antes mesmo de pegar a cerveja, Martha chegou pelas costas.
- Chegou cedo hoje, amor.
- Não cheguei ainda. To só de passagem. Vim só trocar de camisa e já vou voltar pra DP. Hoje vou chegar tarde. Tem um caso novo e to cheio de coisa pra ler.
Mostrou a pen-drive enquanto falava, só de sacanagem. Martha não entendia nada de informática e jamais compreenderia que dentro daquela canetinha poderiam conviver arquivos com páginas e páginas de texto, além das fotos da última putaria que ele fez quando ela chutou o balde, disse que ia embora e passou uma semana na casa da mãe. Se ela não tivesse levado o Pedrinho junto precisaria bem mais que uma semana de gandaia para Brasil se encher de saudades e passar na casa da sogra com cara de arrependido para resgatar a família. Pedro Yarlei Albuquerque Brasil era o xodó do pai. Nasceu em dezembro de 2006, dias depois do homônimo destroçar o Barcelona do outro lado do mundo. O Homônimo, ah o homônimo. Pedro Iarley Lima Dantas, mais conhecido apenas como Iarley, cearense de Quixeramobim, fez fama no Boca e no Inter. A homenagem era bem mais que justa. E também, no fim, Martha nem deu bola ao acréscimo no nome. Haviam combinado que seria Pedro e isso, pelo menos isso, Brasil cumpriu.
- Não vai me dizer que é aquele caso do advogado viado que deu na tv?
- Esse mesmo. Homicídio. E pelo que sei, o cara não era viado.
- Como não, Antônio? Advogar só pra homem? Isso pra mim é coisa de viado. Pelo menos passa no super na volta. Ta faltando tudo em casa, nem sei o que vou fazer de janta pro Pedrinho. E compra também absorvente porque to naqueles dias e não tenho nada em casa.
Não sabia que Martha tinha algum interesse nessa área. De onde ela sabia que o Dr. Edmílson só advogava pro time masculino? Não lembrava dessa informação já ter saído na imprensa. O comentário acendeu a luz vermelha na cabeça do Inspetor Brasil. Melhor andar na linha. Ela só podia ter conversado com alguma advogada que perdeu ação para o falecido. Já estiveram a ponto de acabar com o casamento umas vinte vezes, mas consulta com advogada era novidade. Foi a última informação, porém, que o fez decidir que trabalharia até mais tarde mesmo. Como sempre, poderia reclamar, dizer que quando namorados não tinha essa frescura, mas, na verdade, ele também ficava sem vontade quando Martha estava em tal estado.
- Tudo bem. Compro tudo. Manda a lista por mensagem no celular.
 Trocou a camisa e saiu tomando a cerveja no gargalo da garrafa, não sem antes dar um beijo protocolar na esposa. No caminho do carro, passou por Juarez que estava à espreita no muro. Ele sempre está.
- Boa tarde, seu Brasil. Chegando cedo em casa?
- Que nada, seu Juarez, não tenho essa moleza, não sou aposentado. Estava aqui perto e passei para ver a Martha, só isso.
- Alguma notícia das minhas ferramentas furtadas? A polícia deveria investigar isso melhor.
- Não é da minha jurisdição, seu Juarez. Não é da minha jurisdição.
Quando chegou na DP, ainda estava tão puto que resolveu passar no boteco do portuga para outra cerveja antes de entrar no prédio. Era melhor encarar a Delegada Hollanda mais perto da hora de ela sair, caso contrário a chefe ia querer muita explicação e hoje ele simplesmente não estava com vontade de dar mais explicações das que já dera em casa.
O Bar e Armazém do Porto ficava bem ao lado da delegacia. A cerveja era gelada e o bolinho de batata era honesto. Logo, era mais fácil encontrar os policiais no boteco do que na repartição. Ao vê-lo chegar, Manoel já pegou uma Patrícia da geladeira, colocou no balcão ao lado do copo que passou no pano que tinha uma relação simbiótica com seu antebraço. Pronto, finalmente Brasil estava em casa.
Manoel era um bom sujeito, sabia servir bem a freguesia e nunca cobrava as dívidas na frente de terceiros. Sempre aceitava um cheque para a data do pagamento e, mesmo assim, no mais das vezes em valor inferior ao saldo pendurado. Brasil cumprimentou o portuga e sorriu para si mesmo ao observar que, mais uma vez, somente quando ele encostou o dedo no copo de cerveja é que a caneta viajou da orelha ao caderninho, guiada pelas hábeis mãos do bodegueiro, para anotar mais um débito pendurado. Produto cobrado, somente depois de tocado. A única coisa estranha era o senso de humor dele. Apurado demais para um imigrante Lusitano. Manoel tirava sarro de todo mundo. Policial, freguês, fornecedor, ninguém escapava.
- Grande Brasil. Veio visitar as Nações Unidas?
Era assim que Manoel chamava a 14ª DP, pois além dele, Brasil, da Delegada Hollanda, tinha também a Dona Quênia, auxiliar de limpeza da prestadora de serviços terceirizada e o Togo. Togo era o apelido de Antônio Gonçalves da Silva, nome de batismo do neguinho que lavava carros na frente da delegacia. Brasil mesmo havia apreendido Togo puxando um carro lá nas bandas do Shopping. Ficou com pena do guri de cor indefinida e cara de fome. Claro, meteu uns cascudos nele antes, primeiro a obrigação, mas depois deu uma aliviada quando depôs no processo dele lá no JIJ. O guri pegou um PSC leve que por sugestão de Brasil à servidora do Serviço Social Judiciário cumpriu lá na DP mesmo. Foi tratado como filho pela Dona Quênia e foi ficando.
Manoel também dizia que a hierarquia da delegacia era conforme o IDH do país. Hollanda manda no Brasil, o Brasil manda no Quênia e Quênia manda no Togo. Tá, tinha também o Mello, mas não existe piada perfeita. Ademais, o Mello pouco ia ao trabalho e não servia nem pra fazer parte da piada, pois não tinha nome de país e quem mandava nele era o Turco, bicheiro da área.
Brasil olhou para o celular e viu que Martha já tinha mandado a mensagem.  De computador ela não sabia nada, mas no celular ela era fera.
- Ô vascaíno, anota aí a lista da patroa: feijão, arroz, cebola, batata, leite em pó, café, pão de sanduíche e um Módis. Bota tudo naqueles saquinhos do Zaffari que te dei aí e põe na conta. Na saída eu levo.
- Podexá seu Brasil, já estou a anotar tudinho. Dessa vez as sacolinhas tão novinhas. Lisinhas e branquinhas. Guardei elas na gaveta, como o senhor mandou. Dona Martha nem vai notar que o senhor fez a feira aqui no meu estabelecimento.
- E bota tudo separado. Faz que nem no súper. Tu sabe que a patroa fica puta quando eu compro fiado aqui, né?
- Sim senhor. Tô sabendo. A mulher é chique. Gosta só de produto de marca boa, pesado em balança digital e com prazo de validade na etiqueta. Dona Martha é bacana, seu Brasil. O senhor é um homem de sorte. Podexá. Podexá.
Terminou de beber a Patrícia. Bateu a mão espalmada no balcão duas vezes, acenou para Manoel e foi encarar a delegada. Nem bem colocou os pés na Delegacia, Togo veio correndo ao seu encontro.
- Brasil, Brasil. Onde tu tava? A Doutora quer falar contigo. Tá te esperando na sala.
Quando entrou no gabinete da delegada, a bolsa não estava pendurada. Já estava sobre a mesa, ao lado da pasta do notebook. Os inquéritos já estavam arrumados em pilhas simétricas bem no canto esquerdo, o computador estava desligado e as canetas descansavam no porta-objetos de couro.  Sem dúvida, Hollanda já estava pronta para sair. Percebendo que estava em vantagem, Brasil arriscou o blefe.
- Desculpe o atraso Doutora. Acontece que a coisa lá no centro demorou mais do que eu imaginava. A cena do crime estava uma bagunça. A secretária, imagina a Doutora, estava puteando todo mundo. Xingava a tudo e a todos. Nunca ouvi tanto palavrão. Acho que era de nervoso, a coitada gostava do patrão. Se a doutora tiver um tempinho posso lhe colocar a par de tudo o que apurei. São muitas informações. O caso vai ser complicado.
O suspiro da jovem delegada denunciou, ele estava livre dela, ao menos por hoje. Mesmo assim, não escapou da carraspana.
- Onde tu andava Brasil? Porque não atende a porra do celular? Hoje não vai dar. To em cima da hora. Preciso passar no supermercado antes de ir para casa. Termina o relatório da apreensão lá no aeroporto e manda logo a coisa para o laudo definitivo de constatação da substância. Se essa coisa fica aqui na Delegacia mais um dia vai acabar sumindo. São quarenta e cinco quilos Brasil, quarenta e cinco quilos. Se o Turco sabe que tem isso aqui dentro quem vai ser assaltado somos nós.
- Tá bom Dra. Sim senhora. Hoje mesmo eu termino o relatório e amanhã levo tudo pro IGP. Se a senhora for ao Zaffari, pode trazer umas sacolas plásticas pra mim?
- Trago sim. Fica tranquilo. Depois tu pegas comigo, na hora que me trouxeres o relatório para assinar. Boa noite.
Já estava fora do gabinete quando gritou a última frase, sem sequer virar-se para o inspetor.
- E vê se atende a porra do celular que o plantão é nosso hoje. Se vai ficar de frescura eu tiro o funcional da tua mão e tu fica sem. Pensa que eu não sei que o teu tá cortado?
Passavam das sete e meia da noite quando finalmente sentou à sua mesa na repartição. Ficou feliz em ter se livrado da Delegada. Não estava nem um pouco com vontade de falar sobre o caso do advogado. Não tinha muito a dizer. A linha de investigação escolhida era fraca. Logo ele, um homem de ação, fazer investigação lendo historinha escrita pelo morto? Acima de tudo, ficou feliz em não ter de optar entre contar ou omitir o detalhe do paudurismo do cadáver. Ainda assim, tinha que começar a ler aquela merda.
 Ligou o computador, pegou o pen-drive do bolso e colocou na primeira entrada USB. Deu um clique no teclado e apareceram várias pastinhas desenhadas na tela. Cada uma era de um cliente do Doutor Edmilson. Os suspeitos estavam ali, enfileirados na frente dele, igual quando apresentados para a recunha da vítima. A merda é que, olhando assim, eram mesmo todos iguais.  Escolheu um dos arquivos ao acaso, clicou duas vezes no nome. A pasta Guinther era a primeira. Antes de começar o trabalho que felizmente lhe afastaria por alguns instantes do tal relatório da apreensão, percebendo que Togo estava na sala, a alguns metros de respeitosa distância, feito um cachorro que olhava o dono, Brasil disparou:
- Se vai ficar pentelhando é melhor fazer alguma coisa útil, vai lá no portuga e trás uma Patrícia gelada e um copo.
                           Togo foi num pé e voltou no outro. Trouxe duas cervejas e dois copos. Guri abusado.

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