Pesquisar este blog

quarta-feira, 27 de julho de 2011

CONTO: DUAS LARANJAS NA MÃO E UMA VOANDO - Mário Garrastazu Médici


     
     Antes, quando o pai e o Tonho se postavam nos degraus da ponte sobre o  Dilúvio, apenas as cabeças de fora observando cada movimento - especialmente o brilho das esparsas moedas que surgiam dos vidros dos automóveis - o Maninho errava duas em cada cinco manobras. Nem sempre deixava as bolinhas ou gravetos tombarem no asfalto, mas percebia a imperfeição na execução, o titubeio na retomada, o tremor na agilidade das mãos. O irmão e o pai, olhos ávidos pela próxima rodada de pedra ou de cana, esquadrinhavam cada movimento em falso, e a reprimenda vinha. Na hora, dardos inflamados nos olhos e negativas de cabeça. Ou depois, orelhas quase arrancadas pelo pai. Pior, o desconsolo raivoso no semblante do irmão, que lhe ensinara toda a técnica.

     O irmão mais velho. O Tonho. Shows diários nos semáforos da Ipiranga desde os cinco anos, sem nunca perder a mão. Verdadeiro artista da faixa de segurança, que lhe ensinara generosamente, sem esconder pulo, passo, sequer bocejo do gato, os malabarismos que garantiam pão - e circo, embora de horrores, por vezes - à família exclusivamente masculina. Além deles, havia o temporão, o Pedrinho, recém iniciado em seus primeiros passos tímidos nas calçadas, engatinhando em seu estágio, o esmolar puro e duro com olhos lacrimejantes.

     Mãe não havia, houvera nunca no olhar do Maninho.

     Mas o Tonho. O verdadeiro artista. O Tonho ficara velho demais para as ruas. Não por qualquer decréscimo na habilidade, o bicho era um avião com mãos e pés, o rei do farol vermelho e dos campinhos da vila. Porém, o pessoal dos carros tinha muito medo de guri grande. E o Tonho já era um guri grande, preto e grande, grande e feio, principalmente feio. O cabelo ruim e o nariz achatado demais. Os dentes tortos e quebrados. Os olhos amarelados e sem vida, no rosto escuro e assustador. O Tonho já não dava mais para o trabalho da sinaleira. Passara a ensinar alguns rudimentos ao caçula, e acompanhá-lo por outras esquinas da cidade junto com o pai, Stromboli da própria prole.

     Assim, o Maninho ficara solto nas duas últimas semanas, por sua conta e risco. Pensava se chamar João, mas nunca ouvira nome qualquer na boca dos seus. Tivesse mãe, talvez descobrisse a textura do nome próprio chamado na voz materna. Não era o caso, o Maninho sequer era chamado, apenas empurrado ou arrastado de um lado para o outro. Só que agora estava sozinho na avenida, o pai e o Tonho longe com o caçula, o sinal já fechando de novo, deixa eu ir lá com as minhas laranjas, eles vão ver que espetáculo.

     Começara com as bolas amarelas, velhas e murchadas, de um esporte que  sequer sonhava como se jogasse, mas que lhe diziam chamar tênis, como o calçado rasgado que levava nos pés cascudos. Tivera de abandonar, por mais que cuidasse uma sempre se perdia ou se estragava no vaivém do trânsito, ou caía no riacho, ainda era principiante e o pai e o Tonho não tinham como repor. Passara aos gravetos, a trinca de gravetos cuidadosamente desbastados com o pequenino canivete para deixá-los todos com o mesmo peso  e sem felpa a atrapalhar o manuseio. Os gravetos, contudo, não se prestavam a um grande conjunto de manobras, nem tinham o apelo de esferas coloridas girando no sol, também foram deixados de lado. Tentara  limões, mas o tamanhinho dos que conseguia descaminhar no fim da feira proibia os voos mais elaborados que o Maninho já criava sozinho. Elegera, por fim, as laranjas. As laranjas tinham o volume e a consistência exatos para suas necessidades, e eram fáceis de conseguir em qualquer balaio de xepa, no mais das vezes sequer precisava pechinchar com suas parcas moedinhas. Um sorriso mais terno para o feirante, as ferramentas de trabalho estavam garantidas.

     Além disso, tinha uma refeição a salvo quando a hora do pico terminava. Sentava com a minúscula lâmina em frente ao posto de gasolina da esquina e atacava suas laranjas quando a fome batia no fim do expediente. Gostava de descascar com paciência, gerando espirais perfeitas com as quais se perdia brincando por breves segundos, imperfeito retorno à infância que não conhecera. Depois, tirava as tampinhas, devorava as três laranjas lembrando do dia inteiro sem  merenda e se punha  a esperar o pai e o mano.  Noutros dias, porém, a fome se deixava sentir antes que tivesse tempo para as esculturas, e fazia dois cortes transversais na fruta, desdobrando rapidamente quatro gomos, devorados até o amargor da parte branca da casca.

     Menos ontem, noite já alta.

     Ontem não resistira a uma vontade de duas semanas, das duas semanas de independência de pai e  irmão, e fora pela transversal da grande avenida em direção ao pé-sujo com o cartaz escrito a giz na frente. Depositara seu butim no balcão e pedira (sem suspeitar querer exatamente o menu descrito no cartaz, no código incompreensível das letras desconhecidas) o bife com batata frita. Bife, moço. Um bife com batata frita. Eram quase dez da noite, fazia o calor da Porto Alegre de janeiro, e as laranjas tinham estragado. Não comera nada o dia inteiro. Então, consumou em cinco minutos, olhos assustados numa mesa suja de canto, o festim. Um verdadeiro bife, mal passado, acompanhado de batatas úmidas de gordura. E adorou.

     Pela manhã, as sensações experimentadas no banquete do boteco (incluindo o gelado de uma garrafa de coca-cola e o doce da balinha de banana que o moço lhe dera de troco) tinham dado lugar a um gosto que o Maninho não sabia explicar. Em parte pelas dores no corpinho mirrado, primeira noite dormida ao relento, não tinha como voltar para casa sem a féria do dia. Ia apanhar do pai, certo, mas nada ia se comparar à pancada do olhar baço e acusador do Tonho. Mas isso não era o pior. O pior, o que trazia pra boca o gosto de um azedo quente pelo sol que já ia a pino, era estar de novo sozinho. Não havia ninguém para fiscalizar suas manobras, que por isso sairiam melhores. Ninguém para lhe arrastar pelas orelhas pela calçada. Ninguém para lhe desmontar com uma só mirada. Não havia ninguém.

     Até o último segundo antes de pegar no sono, na aspereza sufocante do canto de marquise que elegera para dormir, o Maninho tivera certeza de que o pai e o Tonho vinham lhe buscar, como em todos os dias. Nem que fosse pelas moedas. Pelo barato da próxima pedra, do próximo gole. Pelo prazer do puxão de orelhas.

      Não viera ninguém dessa vez.

        O calor já vinha forte mesmo antes de abrirem as lojas e os carros inundarem a avenida. Ainda assim ele começou cedinho no batente, laranjas ao alto,  disposto a triplicar os ganhos do dia, hoje vão ser manobras que nunca tentei antes,  erro zero, vai ser bonito de ver as caras espantadas dos tios e das tias nos carros, e as moedas, ah, as moedas. Ia chegar cheio de moedas em casa hoje, talvez até com um saco de cacetinhos e uma garrafa de cachaça pro pessoal.

         Então o povo colorido chegou.

      Primeiro, pela tinta nos rostos, imaginou serem do tipo de palhaço com malabares de fogo,  já tinha visto um ou dois assim em outros cruzamentos, o rastro luminoso desenhando bonito o céu entardecido. Entretanto, era de manhã cedo, e além disso não eram um ou dois, mas uma porção, um bando, crianças apenas um pouco mais velhas que ele, com as roupas curtas cobertas por manchas alegres. Roubando os seus carros, os seus vidros escuros, as moedas que ia levar de troféu sorridente para o pai e o mano. Sequer tentava se aproximar dos carros. O sorriso (especialmente dos tios sozinhos) para as meninas desautorizava qualquer competição. As caixinhas de papel se abarrotavam a cada piscar do sinal, nunca tinha visto tanta facilidade, até dinheiro de papel o pessoal estava distribuindo hoje.

     Não para ele.

     Ainda tivera ânimo de perguntar ao guri do jornal quem era essa gente, de onde vinham, por que logo hoje, sem sequer ter tempo de demonstrar espanto ao ouvir que não, não era gente, eram bichos.

     Deixou as laranjas enfileiradas no cordão da calçada, dirigiu um último olhar ao cruzamento tão familiar, como que acenando um adeus ao pai e aos irmãos, que adivinhava não mais encontrar, e foi embora, passinho apertado, tragado pelo oceano que principiava na rua lateral.
    
     Decidira largar de ser a laranja da mão, presa com pulso firme até o último segundo, para se tornar a laranja que voa solta, chega ao ponto mais alto que consegue, e só então, depois de girar um sem-número de vezes sobre si mesma, cai.


* * *

Nenhum comentário: