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sexta-feira, 8 de julho de 2011

CONTO: WINDOWS1930 - Mário Garrastazu Médici


O Moreira se gabava de ter inventado a expressão.

Janelear.

E janeleava mesmo, sem pejo nem escrúpulo, sem dó nem piedade. Funcionário público noviço, de um tempo bem anterior ao do planejamento estratégico, da qualidade total, das metas e avaliações de desempenho, deixava o paletó (sempre claro: ora branco, ora palha, ora cru, sempre indelevelmente claro) no encosto da cadeira, ao melhor estilo barnabé semi-aposentado, e saía a flanar. Num dia às onze da manhã, noutro às quatro da tarde – nunca ao meio-dia, hora sagrada, que os almoços da Dona Carminha eram imperdíveis.

O pai também almoçava em casa diariamente, trabalhavam no mesmo prédio, porém em repartições diferentes. O velho Moreira sempre dizia que isso conferia certo ar de respeitabilidade ao início da carreira do único filho, não ficar sob as asas de um protetor. Na prática, no entanto, todos no setor sabiam que o garotão era prole de peixe grande, ninguém se animava a relatar suas escapadas, e ainda tinham de dividir o serviço acumulado. Pois o Moreira menor não deixava terminar dia sem descer as escadas da Junta Comercial, apanhar o bonde que passava em frente ao enorme portão de ferro e ir conferir suas janelas. As já visitadas, que ele mantinha numa planilha preenchida com rigor de recenseador. E as virgens, escolhidas ao acaso conforme as paradas do bonde, em data de iniciar tarefa nova.

Hoje era dia de revisitar a casa branca da esquina da Ladeira. Janela simples, abertura austera, pintada de marrom como as portas, uma entre diversas casas irmãs. Com a pombinha ruiva nos seus dezesseis anos sempre com ar sonhador à espreita. Era uma data especial, dia de mudar de fase. Iniciar o janelear dois. Ainda não contei que o Moreira tinha um método infalível, em três fases, para capturar os olhares das moças (às vezes nem tão moças, às vezes não só os olhares) que se deixavam ficar debruçadas nas janelas da cidade, como monalisas enigmáticas em suas singelas molduras.

O janelear um, primeiro estágio de seu projeto de sedução, após escolhido e bem avaliado o alvo - da segurança dos bancos de madeira do bonde -, consistia em uma caminhada na calçada oposta à janela em vista, pé depois de pé, na marcha lentíssima de quem não quer chegar a lugar algum, mas está em missão. O Moreira ia reto e firme, olhando sempre para frente, o chapéu quase encobrindo o rosto jovem e bonito. E nem nada para as janelas lá do outro lado. No entanto, quase no final da rua, um segundo antes de dobrar a esquina, zap, uma guinada de pescoço felina, uma mirada fulminante e doce para a janela. Quase sempre surpreendia em si o par de olhos femininos, que baixavam imediatamente.

Assim tinha sido com a ruiva. Uma, duas, três vezes. Cinco.

A quinta vez invariavelmente conduzia ao janelear dois. O mesmo desfile na calçada contrária, em idêntica velocidade de cruzeiro. Agora com o olhar confiante, (doce) e rapace dirigido ostensivamente à presa, o chapéu jogado para trás deixando ver a expressão mais sedutora que conseguia alinhar. O abano discreto e o beijo soprado a cinco passos do fim da rua, dando o tempo exato de a donzela retribuir antes de vê-lo desaparecer na esquina.

Com o sorriso da vitória no rosto.

(Sobre o janelear três, as poucas ocasiões em que o Moreira abandonava a falsa timidez, cruzava a rua e ia ter de bem perto com seu alvo – no pé da janela, no mais das vezes, tratando-se de uma pombinha de família, ou adentrando umbrais, no caso de uma viúva jovem ou de uma teúda e manteúda de coronel, em ruas mais afastadas – não falaremos, por ora).

Na manhã daquele dia, o dia em que daria o segundo passo em direção à ruiva da casa branca, o Moreira pouco falou na mesa do café. A família reunida, nas ritualísticas refeições em conjunto para as quais ninguém podia sequer se atrasar, que dirá faltar, o pai dando algum sermão matinal sobre a importância do trabalho na Junta, talvez uma oportunidade para o menino na subchefia do almoxarifado. A mãe servindo o suco de laranja do céu espremido na hora e alertando para a maravilhosa braciola recheada com toicinho e cenoura do meio-dia. Em ponto. O garoto engolia o suco e o pãozinho com manteiga sem dizer palavra, quando muito um movimento de cabeça. Sempre afirmativo. Sim, iria para mais um dia de trabalho na Junta (mas fugiria para o seu jardim secreto de prazeres tão cedo quanto possível). Sim, se houvesse uma vaga melhor remunerada na subchefia de qualquer repartição, ele aceitaria (desde que pudesse fugir para seu jardim secreto de prazeres). Sim, estaria ao meio-dia sentado comendo braciolas com o delicioso molho escuro e espesso da mãe (na volta do jardim secreto de prazeres).

O Moreirinha só pensava, no entanto, no segundo posterior à descida do bonde. Na casa branca de janelas marrons com a ruiva tímida a lhe esperar. E na casa rosada, mais modesta, com a pintura descascada e janelas cor-de-vinho igualmente descascadas, que lhe era geminada. Como um bônus para suas incursões à esquina da Ladeira e seu desfile na passarela da calçada oposta, o Moreira se via intrigado pelo vulto semi-encoberto pelas pesadas cortinas da casa rosada. Em oposição à miúda da casa branca, o vulto parecia excessivamente volumoso. Embora demonstrasse a mesma constância. Estava sempre lá, como a ruivinha. Sem nunca mostrar muito, sem nunca aparecer completamente, mas sempre lá, senhora de seu caixilho. Com toda a certeza, seguindo cada movimento do cavalheiro de chapéu, o Moreira podia sentir a cada olhar de esguelha. A gorda também lhe esperava.

Enfim, também para essa opulenta dama, por tortuosas vias, hoje seria dia do janelear dois.

Ao depois, na volta para casa, enquanto pensava nos fumegantes bifes enrolados da Dona Carminha, para os quais já estava atrasado cinco minutos (o bonde lento, lento, lento), o Moreira mastigava sua surpresa como tira-gosto. Tinha feito tudo certo. O mesmo ritual de sempre. Se apresentara cedo para o trabalho, chegara mesmo a sentar em sua mesa por alguns instantes. Não deixara o paletó nas costas da cadeira por força de um vento mais fresco e traiçoeiro (teria sido isso?). Se mostrara até mais elegante do que o costume, enfim. Desfilara altivo e garboso, quase um percherão.

Sua surpresa não tinha sido com o beijo soprado sorridentemente pela ruivinha miúda, com esse já contava no alforje de conquistas. Nem com o fato de a geminada gorda finalmente ter aberto as cortinas de par em par, se mostrando em toda sua magnificência, e o encarado fixamente durante todo o trajeto. Ou por ela parecer bem mais velha e desleixada do que o esperado, e extremamente feia, feia, feia. Nem mesmo pelo fato de ser três vezes mais gorda do que a pintara.

Não.

Seu sobressalto fora com a fúria surda estampada em seus olhos, com a desfaçatez com que (em lugar do beijo imaginado) lhe pusera a língua de modo ostensivo e, especialmente, com o sinal vil e enérgico com o dedo médio da mão direita erguido, os demais em descanso, antes de fechar violentamente as cortinas. Um sinal cujo significado integral ele ignorava naqueles inocentes dias, mas para o qual intuía a universalidade e a relevância das janelas abertas.


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