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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 3 - Alexandre Boeira

Tem dias que a gente abre a porta do escritório e torce para ninguém entrar. Esse é o dia em que eles entram. São meus clientes, mas preferia que não fossem. Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria fazer outra coisa, mas não sei.
Ele sentou na cadeira de couro, bela escolha. Disse que eu tinha sido bem recomendado, duvidosa escolha. Perguntou o que eu precisava saber para pegar a causa e quanto cobraria. Respondi como sempre:
- Me conta tudo. Absolutamente tudo. Desde o dia que teu pai conheceu tua mãe. E o preço? Bom, o preço depende do que tu me contar.
Veridiana quase teve um troço quando Bento lhe mostrou o papelucho. Se não tivesse parido a dois dias, jurou que ia parir de novo. O marido não fazia nada direito. Além disso, essa coisa de o hospital facilitar tudo... sei não, devia dar nisso mesmo várias vezes. Bastava levar a tal declaração de nascido vivo a uma salinha no próprio prédio, dois lances de escada abaixo da maternidade, e pronto. Qualquer mentecapto ia lá e dava sozinho o nome de registro ao filho. Bem que ela insistiu em ir junto, mas o médico proibiu. O parto fora difícil, mulher acima dos quarenta anos e, principalmente, acima dos oitenta quilos.
- Porra Bento! Desde quando Guinther é nome de preto?
- Calma nega, olha a pressão, olha os pontos. Eu te avisei que queria homenagear o doutor.
                   E assim nasceu Guinhter Amoroso da Silva, na maternidade São José. Aquela que foi pioneira no Brasil em facilitar a obtenção da certidão de nascimento com a instalação de um quiosque do Cartório da Segunda Zona do Registro Civil das Pessoas Naturais.

Guinther teve uma infância segura. Paparicado como era de se esperar dos pais que tentaram por vinte anos procriar, até então, sem sucesso. Embora cercado pela miséria da Vila Orfanatrófio, teve boa educação, cuidados com a saúde e morava na melhor casa da viela, com um quarto só seu e até um cachorro companheiro. Um Dog Alemão a quem deu o nome de Jorge, em homenagem ao santo, um pouco para reparar o erro de Bento e fazer a vontade da mãe, outro tanto para completar a troça involuntária do pai. Nego Guinhter e Alemão Jorge formavam uma dupla inseparável.
O dinheiro não provinha exatamente do trabalho dos pais. Poderia até dizer que sim, mas não era parte do trabalho do pai perder três dedos da mão direita na injetora ao final do turno de doze horas de trabalho. O processo foi um tanto demorado, a perícia um pouco humilhante. Doeu mais ainda ver o filho do patrão, a quem admirava mais que o centroavante do Aimoré, ficar ali de frente pra ele, ouvindo com cara de paisagem o Joca mentir que ele teria feito tudo de propósito. Doeu, mas valeu. Afinal de contas, o Doutor Guinther, ah o Doutor Guinther, colocou tudo em pratos limpos. Sentença em audiência, ditada de pé, com o processo aberto em uma mão e o dedo da outra – um daqueles que o pai não tinha – desenhando no ar as palavras que fluíam sem margem para dúvidas ou hesitações. Bento chorou ao sair da sala. E choraria de novo, dois anos depois, quando a decisão foi confirmada e louvada no Tribunal. Mas foi antes, foi durante a leitura da sentença que Bento tomou duas decisões. Comunicou à mulher uma delas. Todo o dinheiro ganho seria reservado para o filho que planejavam um dia ter. A segunda guardou pra ele. Se fosse guri, iria se chamar Guinther.
E Guinther progrediu. Melhor aluno da turma, primeiro lugar no vestibular da Universidade Federal, orador na formatura e uma bolsa de mestrado sanduíche, trampolim para o Doutorado, ambos na Alemanha, terra dos antepassados de seu padrinho involuntário. O nome nunca lhe foi empecilho. Ao contrário, adorava o burburinho da plateia cada vez que subia ao palco atendendo ao chamado do mestre de cerimônias ao Doutor Guinther, sempre precedido de seu imenso currículo. Mas o que mais gostava era a reação de seus alunos na primeira aula do curso regular de pós-graduação Comparative and European Private Law , na University of Edinburgh.
- Parou, parou. Para tudo aí Doutor. Posso lhe chamar de Doutor?
- Pode. Claro que pode.
- Várias coisas eu não tô entendendo, mas principalmente, se tu mesmo é Doutor, porque veio me procurar?
- Veja bem. Sou um acadêmico. Advoguei muito pouco, e sempre fora do Brasil. Além disso, o caso é de família, fora da minha área e totalmente desaconsellhável para a advocacia em causa própria.
A expressão do cara não mudou uma ruga quando eu interrompi seu relado de vida. Ou esse negão era um-sete-um dos bons ou era tudo verdade. Tava quase chamando a Dona Nívea pra botar pra rua aquele sacana, com direito aos impropérios e tudo. Acadêmico o cacete! Pegadinha tudo bem, mas dessa vez o Ariovaldo passou dos limites. Vai se foder, meu! Cadê o espírito esportivo? Só porque eu paguei uma puta pra se fazer de ex-mulher de boleiro para ele? Onde ele arrumou esse cara?
Resolvi dar uma chance ao Doutor. Se fosse verdade, ele deveria estar acostumado aos alunos desrespeitosos, pois eu mesmo ficaria ofendido com o meu tom de voz. E afinal de contas, ele passou a falar sobre coisas que me interessavam.
Guinther não só gostava da reação dos alunos, como as estudava. Estudava, interpretava e classificava. Mas só das alunas. Relacionava à cada aluna as reações mais demonstradas à sua presença e as ranqueava. Além de gênio, o negão era espada.
Era metódico. Ao receber a lista de chamada de cada classe, anotava todos os nomes de mulheres. Depois, procurava nos arquivos do mainframe da faculdade os dados pessoais e as fotos das acadêmicas e fazia uma ficha individual para cada uma. Não desprezava nem as feias, nem as casadas. Quando entrava na sala para a primeira aula, sua privilegiada visão periférica e sua prodigiosa memória identificavam e gravavam a reação de cada aluna fichada ao ingresso daquele homem alto, forte, de peitoral definido e impecavelmente vestido, mas, sobretudo, preto, muito mais preto que elas poderiam esperar de um professor chamado Guinther.
Na segunda semana do curso ele já sabia identificar a evolução das reações e dos sentimentos. Colocava metodicamente na ficha de cada uma: espanto, curiosidade, admiração, interesse, tesão. Ao final do segundo mês, já estava atualizando a classificação e identificando seus alvos preferenciais. Quando chegava à última etapa, a aluna estava no topo do ranking, pronta para como ele mesmo dizia, passar da fase de contemplação para a fase de experimentação e interação física. Até pra trepar o Doutor Guinther tinha vocabulário refinado.
Mas até o mais metódico dos planos tem sua falha. A falha de Guinther revelou-se no imponderável, naquilo que nem o conhecimento, nem a didática, nem mesmo seu charme tropical puderam controlar ou se sobrepor. O imponderável chamava-se Sonja, uma estudante sueca de 21 anos de idade. Pernas mais longas que o Caminho de Santiago de joelhos, cabelos louros, longos e lisos e olhar de gata no cio, ela enfeitiçou o professor desde a primeira aula do semestre seguinte.
Sonja ingressou na turma apenas no segundo semestre. Havia cursado o primeiro em Gotemburgo, em univesidade co-irmã da University of Edinburgh. Não que Guinther não estivesse preparado para ela. Já tinha finalizado quatro estudantes no primeiro semestre e outras duas estavam bem ranqueadas, prontas para a experimentação. Sabia do ingresso da nova aluna, já tinha seus dados e fotografia. Estudar a reação de apenas uma mulher era moleza, quase sem graça. Tava no papo.
Contudo, quando Guinther entrou na sala naquela manhã outonal de agosto em Edinburgh viu que não estava preparado para ela. Sonja queimou todas as etapas. Guinther não viu no olhar de Sonja nem espanto, nem curiosidade. Não viu admiração, nem interesse e, principalmente, não viu tesão. O que viu foi certeza. Sonja lhe mandava todas as mensagens de uma só decisão. Decisão dela, não dele. Sonja ia lhe devorar. Não, ela não era a esfinge. Não queria ser decifrada. Não havia enigma, apenas certeza, Sonja é que ia comer o Doutor Guinther.
A aula foi a pior que ele já ministrou. Confundiu os institutos, misturou os princípios, falou em três línguas, mas não se comunicou. Foi pior ainda quando percebeu as expressões de três dos doze alunos homens. Não para ele, nem para a aula, para Sonja. Três dos doze homens da sala já haviam sido devorados. Ele seria tão somente o quarto. E Sonja havia chegado a Edimburgo a apenas duas semanas.
Depois de devorado, Guinther rastejou. Humilhou-se, pediu, implorou. Queria só para ele aquela máquina escandinava. Não adiantou, Sonja tinha seu plano, tinha também seu ranking. Restava a Guinther conformar-se ao seu papel de coadjuvante na vida dela e retomar seu método original, pois já estava sendo cobrado, tanto pelas ranqueadas que atingiam o topo e não recebiam seu upgrade, quanto pela direção da universidade, que havia notado o decréscimo na avaliação do curso, ainda muito bem conceituado, mas abaixo do que o currículo e histórico do ministrante sempre agregaram à instituição.
Quando já pensava em largar tudo e voltar ao Brasil veio a surpresa. Sonja o procurou depois da tradicional aula de sexta-feira, normalmente a menos produtiva da semana. Disse que tinha terminado sua fase de pesquisa e estava pronta. Os dois estavam prontos. Ele nem precisou perguntar o que ou para quê. O estudo da reação dela disse tudo. Não era admiração, não era surpresa, não era tesão. Era amor. E também era amor o que ela via naquele homem, e ele não conseguia esconder.
Casaram logo depois que ela se formou. Prosseguiram morando em Edimburgo, tiveram dois filhos e ainda mantinham os velhos hábitos. Ele continuava dando aulas e fazendo seu ranking, embora sem a mesma volúpia. Ela também dava uma devoradinha aqui e ali, apenas para não perder a prática e continuar decifrando seu homem.
- Para! Para! Para! Para tudo.
Parei de novo, antes que ele me enrolasse e a tempo de ficar um pouco de lado na cadeira e cruzar as pernas para disfarçar a leve ereção que a tal da Sonja já tava me causando.
- Doutor Guinther, qual é o segredo nessa história? O senhor sabe muito bem que não posso advogar fora do país? Ta me tirando pra bobo? Que culpa tenho eu que a vadia continuou dando pra faculdade toda? Aquilo lá é Europa. Deve ser comum. Além do mais, a mulher é sueca. Todo mundo sabe que sueca gosta de dar. Não precisa ter vergonha de contratar um advogado de lá mesmo para a separação.
- Não é nada disso. Eu não quero me divorciar da Sonja. Ela é a mulher da minha vida. Nossa relação é firmada em bases sólidas e bem estabelecidas. Não há dissenso nesse tópico. O problema é outro e o senhor vai ver que pode me ajudar.
Porra! O cara fala bonito até pra justificar os chifres. Pois bem, dei ao doutor a segunda chance e continuei a ouvir sua história.
O problema era da minha alçada sim. Acontece que o acadêmico não ministrava apenas na Europa. Mantinha também um curso de férias no Brasil, aqui mesmo na Católica, a fim de poder visitar os pais sem gastar com as passagens e ainda faturar um extra. Eram também as férias conjugais ajustadas nas tais bases sólidas. Claro, enquanto ela dava uma devoradinha por lá, ele também fazia um fast ranking nas brazucas. Daí surgiu seu probleminha.
     Em uma dessas férias o ranking do doutor foi escasso. Das vinte e uma mulheres do curso, apenas quatro chegaram ao final do ranking e, dessas, somente uma atingiu a fase de integração física. Por conta da safra exígua o doutor deu mole, ou melhor, deu duro demais. Em um mês de curso, praticou a integração física dezoito vezes. Tudo bem, era a quantidade regular, a média registrada no Brasil. Acontece que todas as dezoito foram com a mesma aluna. Todo mundo sabe que as brasileiras dão fácil. Porém, todo mundo sabe também que comer a mesma mulher dezoito vezes no mês, seja no Brasil, seja em qualquer lugar do mundo, ou é fixação em alguma mina pay-per-fuck, ou é namoro.
Guinther voltou para Edimburgo sem saber que tinha deixado namorada no Brasil. Pior que isso, quando retornou aos braços de sua amada Sonja, não sabia que havia deixado um filho encomendado e um futuro sogro colérico, disposto a tudo. Disposto a mover todos os mundos e fundos que o dinheiro dele poderia alcançar para fazer aquele filho-da-puta metido a besta reparar o malefício causado a sua única filha. O Senador Ferdinando Carllos não costumava ser flexível. Tinha sido ao concordar com sua esposa e deixar Nathália vir ao sul, sozinha fazer o curso de verão tão recomendado, mas prometeu a si mesmo que nunca mais seria.
De tanto ameaçar Guinter, ameaçar física e psicologicamente, o senador conseguiu. Para evitar que ele fosse em pessoa até Edimburgo, o que acabaria por expor a família européia do doutor, da qual nem o senador nem Nathália sabiam existir, ele concordou em registrar o filho e casar com a ofendida. Foi o que fez em uma das férias conjugais, de modo que Sonja nunca ficou sabendo.
- Safado! O que tu quer comigo é o divórcio no Brasil. Quer se livrar da encrenca daqui e voltar pra vadia?
- Preliminarmente, devo dizer que perdôo seu vocabulário. Repito que seus préstimos foram muito bem recomendados e acrescento que serão também bem pagos. Quem o indicou também me alertou sobre seu temperamento. Embora acredite que minha fonte não seja tão bem informada, pois me alertou mais ainda sobre sua secretária, o que achei estranho.
- O doutor ainda não viu nada. Se quiser lhe ofender mesmo, aí eu chamo a Dona Nívea.
- Continuando, doutor Edmílson, a questão maior é que eu casei no civil, tanto aqui quanto lá. Preciso de um divórcio rápido e limpo. Preciso fazer isso agora e voltar para minha vida.
- Sim, mas o Senador, o cara vai te capar. Se não te capar por comer a filha dele, vai te capar por querer deixar ela, vai te capar mais uma vez pela tua bigamia, e vai te capar de novo quando souber das questões financeiras que um divórcio implica.
- Doutor Edmílson, eu tenho apenas dois testículos. Além disso, o senador já morreu. E eu não quero nada da Nathália. Quero apenas ficar livre. Por mim, deixo toda minha parte para o Frederico Carllos Neto.
- Se é tudo tão fácil assim, porque o senhor precisa de mim? Poderia ser qualquer um.
- Porque o senhor defende os homens. Porque o senhor é famoso por divórcios rápidos. Basta uma conversa, um café com a outra parte e o acordo sai. E também porque disseram que o senhor ia gostar da minha história.
Ele havia me estudado mesmo. Será que era tudo obra da sua fonte anônima, ou ele tinha aplicado em mim algum de seus planos metódicos. Porra, sai pra lá. Não tem essa de experimentação e integração física comigo. Ainda mais com um negrão de quase dois metros de altura.
Esse divórcio vai ser moleza. A parte da bigamia nem vai aparecer. Mesmo assim vou cobrar caro. Quanto custa uma passagem para Edimburgo? Além de um cafezinho com a mulher brazuca, vou querer um almoço de doze talheres com a Sonja. Cacete, se eu tivesse dois paus, tava com ambos duros agora.
Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria saber fazer outra coisa, mas não sei. Queria conhecer a Suécia.

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