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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 4 - Alexandre Boeira

Brasil acordou sobressaltado. Era assim que acordava. Quando despertava de seu estado de sono letárgico, o corpo do inspetor reiniciava todas suas tarefas de vigília em um único estalo. Não tinha graduação, ou estava em sono profundo, quase morto, ou parecia ligado na tomada. A transição entre os dois estágios era algo parecido com o paciente ao ser desfibrilado na série House, enlatado que tanto adora. Clear ! Clear!
O cérebro não. Fazia sim parte daquela carcaça, mas negava-se a participar de tamanha reação automatizada. Prezava muito o status de órgão superior para ser sacudido assim nesse toque de alvorada esquizofrênico. Por conta disso, era bastante comum Brasil surpreender-se de pé, ao lado da cama, sem saber como tinha chegado até ali. Nessa manhã, quando o cérebro ultimou seu reinicializar completo, Brasil encontrou-se nu, defronte ao espelho do quarto e coçando o saco. Esse movimento sim, era automático.
Não gostou do que viu e virou-se para a cama, procurando suas roupas. Encontrou-as no chão, reviradas e misturadas às roupas de Martha, que dormia angelicalmente na sua parcela do minifúndio de molas comprado em doze vezes nas Casas Bahia.
Colocou apenas as cuecas e o relógio de pulso. Deixou o quarto e foi para a cozinha procurar algo para o café. Abriu a geladeira e saboreou a primeira cerveja do dia. Ao receber alimento, seu cérebro retribuiu, abriu o compartimento da memória recente e lhe ofereceu um resumo dos fatos da noite anterior, desde a 14ª DP , onde leu a estranha história cliente do falecido Edmílson, o tal do Guinther, até agora, em sua cozinha procurando um queijo para colocar nos ovos mexidos que preparava. 
No intervalo disso tudo, depois de despachar o Togo da repartição, havia terminado o relatório da investigação sobre a apreensão dos quarenta e cinco quilos de maconha, localizados no vão aberto na estrutura da alça de acesso do aeroporto à Br-116, sentido interior-capital:
Versa o presente sobre Inquérito Policial 772-14DP-2011, instaurado a partir do Auto de Prisão em Flagrante 36-14DP-2011, lavrado quando do cumprimento do mandado de busca e apreensão blá, blá, blá; blá, blá, blá; blá, blá, blá.
Fez o que a Delegada mandou, mas também atendeu o que o Pernoca pediu.
Pernoca deu todo o serviço. Disse que operários da arena do porto-alegrense, todos nordestinos trazidos ao sul com promessas de salário em dia, mantimentos semanais e alojamento limpo, estavam se revezando em suas folgas mensais e, viajando de ônibus até Cabrobró, no sertão pernambucano. Afirmou com conhecimento que ao retornarem traziam de lá generosos e bem prensados tijolos da famosa maconha daquela região. Com tal transporte formiguinha pretendiam compensar as promessas descumpridas pelo patrão e finalmente juntar o dinheirinho prometido mandar à família. A diferença entre o preço praticado lá no nordeste produtor e o valor pago pelos consumidores da metrópole sulista valia o risco, principalmente quando o frete era de graça, uma vez que as passagens mensais eram a única promessa que a empreiteira cumpria religiosamente. Do contrário, era motim certo nos alojamentos.
Pernoca deu os nomes, o local onde estavam armazenando a droga e disse até o porquê da sua delação. O porquê era o Cupim.
Pernoca já reinava entre os travecos da Vila Areia quando passou a se chamar assim. Foi quando um cliente inebriado pelo álcool  disse que a biba parecia uma atriz de cinema, a mulher de um traficante, aquela das pernocas roliças. Era filme brasileiro, mas filme bom, e pernoca gostou e adotou o apelido. Foi quando já era pernoca a mais de ano que tudo ali começou a mudar. A vila deixou de ser Vila, os assaltos a pedradas na BR-290 foram o pretexto. Toda aquela área estava valorizando, era preciso mandar os pobres para mais longe. Limpa a área, definida a destinação, começaram a chegar os operários, entre ele o Cupim. Pernoca gostou do Cupim e o Cupim gostou do Pernoca. Como o auxiliar de pedreiro escondia dos colegas a sua preferência, passaram a se encontrar no privê do Pernoca, conquistado a marretadas nos tijolos de cimento que, uma vez retirados na quantidade suficiente para dar espaço a uma porta, criaram o ambiente sob a pista de rolamento da alça do viaduto.
Tudo ia bem até Pernoca ser expulso dos seus domínios. O negócio de Cabrobró cresceu. Cupim estava nele até o pescoço. Como o alojamento era úmido e perigoso demais para a maconha, Pernoca dançou. Mesmo assim, não traiu seu amor. Entregou todos, mas pediu que Cupim fosse poupado. E foi assim que aconteceu. Cupim, ou melhor, Dorvalino Conceição Arruda, assim como Canhoto, Manecão e Ricardo estava no local, mas sob o olhar incrédulo dos outros foi dispensado, até com cortesia. Seria bem melhor para o Cupim que os demais não fossem soltos tão cedo.
Embora efetivamente pudesse correr algum risco, o que Cupim não sabia é que Pernoca o tinha salvado duas vezes. Salvo de ser preso e salvo de morrer, destino certo para aquele bando de nordestinos aventureiros, assim que confrontassem os verdadeiros operadores do mercado vendendo maconha boa e abaixo do preço.
Relatório pronto, tudo padrão. Só com a participação dos flagrados, sem maiores detalhes, sem investigação, sem nada. No final, o nome da Delegada, Maria S.F. de Hollanda. Ela que assinasse assim mesmo.
Feito isso, Brasil foi até o calabouço, nome da saleta utilizada como xilindró, quando necessário, e também como depósito dos bens e substâncias apreendidas pela 14ª DP. Abriu a grade com as chaves que ficavam no mesmo chaveiro do Focus, pegou as duas mochilas militares, pesadas demais para roupas de pau-de-arara, colocou uma em cada ombro, deixou o relatório na mesa da delegada e foi-se embora.
Colocou as mochilas no porta-malas do carro e pensou consigo mesmo que na manhã seguinte iria direto ao IGP. Melhor não ficar com essa merda no carro por muito tempo. Passou no bar do portuga só para pegar as compras. A Patrícia voltou da mão do bodegueiro para a geladeira ante ao sinal negativo do inspetor. A caneta ficou na orelha dessa vez.
Chegou em silêncio, não era tão tarde, apenas a força do hábito. Encontrou o filho na sala, de pijamas, assistindo desenho na televisão. Ele abriu um sorriso sincero que só as crianças e os ingênuos sabem dar e o abraço que veio a seguir valeu o dia, valeu a semana, valeu o mês. Valeu ter ido pedir desculpas para Martha, sob o olhar de censura da sogra.
Deixou o rancho na mesa, pegou Pedrinho no colo, levou o menino até o quarto, deitou na cama com ele e depois da tradicional brincadeira de cócegas, procurou acalmá-lo, leu uma ou duas historinhas do livro predileto do menino. Dez minutos depois ele já estava dormindo. Levantou, deu um beijo na testa do guri, falou baixinho no ouvido da criança. Dorme bem, meu amor. Papai te ama. Fechou a porta do quarto bem devagar, prolongando ao máximo a operação para olhar o filho dormindo. Como ele era lindo assim.
Pelo barulho do chuveiro, Martha, que já estava lá quando ele chegou, continuava no banho. Entrou no banheiro sem qualquer intenção, mas aquela mulher nua não entendeu assim e retribuiu. Olhou bem para ele, dobrou só um pouco os joelhos, curvou levemente o tronco para frente, empinando as nádegas como só ela sabia fazer, e ofereceu os seios apertados entre os braços. Com o dedo indicador, fez um sinal desavergonhado, chamando Brasil. O mesmo dedo foi à boca que já fazia beicinho logo após ela ter dito.
- Vem me dar banho, no chuveiro pode.
Agora, já de manhã, sentado na mesa da cozinha, tomando cerveja e comendo ovos mexidos, o cérebro fez lembrar a ele que era daí a pequena dor muscular que sentia nas coxas. De pé, no boxe do banheiro, isso cansa mesmo as pernas. O cérebro lembrou também que a coisa não parou por aí. Depois de vestida, Martha foi despida novamente e foram para a cama. Por isso as roupas misturadas, por isso não gostou quando viu no espelho que o pau estava um tanto vermelho.
Olhou para o relógio.
Puta-que-pariu! Sete horas da manhã. Vou me atrasar para deixar o Pedrinho na escolinha. Depois das sete e trinta é preciso entrar pelo portão dos alunos maiores. Entrando por ali, precisaria passar defronte ao escritório da diretora para chegar até a pré-escola. O escritório é uma sala envidraçada, a diretora sempre vê quem passa e Brasil está com dois meses de mensalidades atrasadas.
Correu até o quarto para acordar a mulher.
- Acorda Martha. Já passa das sete. O Pedrinho vai chegar atrasado de novo. Acorda, vai. Arruma ele que eu preciso sair.
- Só tu mesmo Raul Antônio. Não enche o saco e volta pra cama. Vem dormir de novo.
Chamar Brasil pelo nome composto, Raul Antônio, não era formalidade, era convite. A Mulher queria replay. Não seria possível. Hoje não.
- Ta louca mulher? Não posso perder a hora. Se o portão da pré-escola estiver fechado eu volto para a casa e tu vai ficar cuidando do guri o dia todo.
- Nós vamos cuidar dele o dia todo. Nós. Eu e tu. Hoje é sábado, mané. Lembra da promessa? Hoje nós vamos levar o Pedrinho e o filho da Adriana para o Zoológico de Gramado. E tu vai me comprar umas meias naquela loja lá. Vem deitar.
- Puta-que-pariu! Sábado? Como é que eu vou fazer agora?
Brasil tinha planejado dar andamento nas investigações do morto de pau duro. Enquanto pensava que teria de adiar tudo, buscou nos bolsos das calças caídas no chão a pen-drive e o papel onde anotara tudo que tinha achado sobre o Guinther, tanto no Google, quanto no Infoseg. Tinha ainda que falar com a Lucinha. Quando lembrou do último compromisso a ser adiado, gelou. Puta-que-pariu! O que é que eu vou fazer com os quarenta e cinco quilos de maconha no porta-malas?
                         Como único consolo, a fim de não ficar todo o final de semana sem nada fazer do caso que estava investigando, separou o pen-drive. Levaria o notebook do plantão para a Serra e poderia ler mais alguns arquivos de clientes do Dr. Edmílson.

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