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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CONTO: SIMULACRO - Carol Teixeira

The simulacrum is never that which conceals the truth. It is the truth which conceals that there is none. The simulacrum is true.
(Eclesiastes)

Ele a olhava na enorme foto na parede enquanto a comia de quatro. Sentia arrepios no corpo todo pelo fato de saber que aquela mulher tão provocante e absurdamente sensual da foto era a mesma dona do corpo que ele possuía com tanta voracidade. A perfeição da imagem estática, do simulacro em contraste com a visceralidade do corpo com seus cheiros, texturas e movimentos - como numa espécie embriagadora de dualidade platônica. A realidade e fantasia se encontrando num arrebatamento que transcendia os padrões normais das sensações num ato sexual. Ele oscilava entre a foto e o corpo - e quando focava no corpo sentia uma espécie de angústia por sabê-lo, em espírito, impenetrável, por mais que o penetrasse repetidamente. A impossibilidade real da posse em contraste com o desejo da fusão.

Talvez ele não soubesse por que, mas olhá-la na foto parecia, de certa forma, menos ameaçador.

Ela era a única mulher sobre a qual ele continuava fantasiando mesmo depois de conquistar. Pensou em dizer isso para ela ali, no ato, mas não disse. Ela por sua vez quis dizer (e disse) que ele era o único homem que a fazia gozar naquela posição, mas no meio da frase foi interrompida pelo próprio gozo levando ele ao mesmo ápice. Entre palavras ditas e não ditas, ficaram ali, grudados, sentindo circular uma energia que de tão intensa parecia tangível. Ele a beijou delicada e repetidamente no pescoço, abraçou forte aquele corpo que, de tão magro, dava medo de quebrar e sentiu uma vontade (que conteve) de chorar.

Ela, hiperativa que era, levantou libertando-se daquela situação tranqüila pós-sexo e foi para a sala, logo o chamando para tomar a garrafa de vinho que ela abria. Ele chegou e ela estava nua, jogada no sofá. O gato caminhava pela beira da janela escancarada do décimo andar – o que causaria arrepios em qualquer um, mas não nela, tão alheia aos abismos da vida. Nem ela nem seu gato tinham medo de cair. Ele, que tinha, correu para fechar a janela e só depois sentou no sofá para tomar vinho. “Será que as pessoas desses prédios conseguem nos ver aqui, sem roupa?”, ele perguntou. “Espero que sim”, disse ela rindo de um jeito tão lindo e livre que fez ele querer congelar aquela cena.
A luz começou a falhar até apagar totalmente. Era a terceira vez no mês que faltava luz, por isso ela nem hesitou: pegou fósforo na gaveta ao lado do sofá e acendeu as velas de enfeite na mesinha.

Silêncio. Súbito e longo silêncio.

No escuro, ele foi andando pela sala à procura do violão. Vinho, escuridão e música: não seria tão ruim assim já que ambos estavam de acordo que dormir não era uma possibilidade. Sob a luz das velas ela conseguia enxergar os olhos úmidos num quase choro, um quase transbordar. Quase, sempre quase. Ela observava aquele olhar tão desprotegido por trás de tanta segurança e pensava no quanto queria entrar naquele mundinho tão complexo e turvo. Havia dor ali, sim, mas havia também amor. Dor e amor - como de praxe, sempre juntos. Enquanto ele tocava uma música que havia composto que sempre provocava nela uma incontrolável vontade de chorar (e ela chorava, sem quases), ela pensava no quanto o amava, no quanto o queria sem meias palavras, meios pensamentos, meios amores. Logo ela, tão volúvel, tão insustentável-leveza-do-ser, estava ali, rendida. Não sabia se sentia vergonha ou deleite por essa rendição.

I could drink a case of you and still be on my feet. Não era essa a música que ele tocava, mas era a letra que vinha em sua cabeça, roubada de um momento passado no qual tais palavras não fazia o mínimo sentido. Mas ali, naquela escuridão tão plena, tudo fazia sentido: he could drink a case of her and still be on his feet. Tudo o que ele queria era conseguir expressar, botar para fora tudo aquilo trancado dentro dele. O som do violão ecoava pela sala em contraste com o silêncio da rua e ele reparou que sempre era assim quando faltava luz: parecia que também faltava som. Palavras também? Ou seria apenas impressão dele naquele momento, sentindo-se como numa cena pausada de um filme? Porque havia a inevitável imobilidade. Sem luz não se pode ver uma televisão, ler um livro, fazer uma comida, ver os emails, não se pode fazer nada por minutos ou talvez por horas. Sem luz não há dispersão, subterfúgios. Então as pessoas param e são obrigadas a conviver com elas mesmas. Ele, com sua vida implícita, ela com sua vida explícita, não tinham para onde fugir.

“Sabe o que eu acho?”, ela falou, servindo-se de mais vinho. Ele olhou, fazendo cara de “quê?”. “Que a gente tinha que parar com esses eufemismos, tipo ´sou louca por ti, gosto tanto de ti´…entende?” Ele parou de tocar, suspirou, também serviu-se de mais vinho e embora quisesse dizer muito mais, só conseguiu dizer “entendo”, sem corresponder à óbvia vontade dela de uma maior expressão. O que fez com que ela questionasse em pensamento por que o amor era tão fácil para alguns e tão complicado para outros. Estavam juntos há mais de um mês e só o que se trocavam eram covardes sinônimos para um “eu te amo”.

Passaram-se duas horas na imobilidade da falta de luz, entre o violão, algumas palavras faladas ou caladas e o silêncio. A luz do dia amanhecendo começava a entrar pela janela semi-aberta, os barulhos começavam a surgir. Era uma terça-feira. Nunca tinha visto o dia amanhecer numa terça-feira, ela disse. Vamos descer então?, ele sugeriu, descer para caminhar, ver como é o dia amanhecendo numa terça. Pegaram mais uma garrafa de vinho e desceram.

O dia amanhecia rosa, mais parecia um entardecer. Olhou para a rua a sua frente. Uma grande avenida para atravessar, daquelas que se atravessa em duas etapas. Não tinham rumo definido, apenas sentiam que tinham que seguir. Pararam no meio-fio, esperando o sinal fechar e ela olhou fundo nos olhos dele, como se quisesse arrancar algo ali de dentro :

“Vamos combinar uma coisa? Quando a gente chegar na metade da rua, ali no canteiro, você me pede em namoro.”

Ele riu de leve com o comentário lúdico, quase infantil. E ela completou:

“E quando chegar do outro lado da rua, você pode acabar comigo se quiser.”

Carros passavam correndo, barulhentos e alucinados. A cidade acordava repleta de possibilidades. A vida iminente. A morte iminente. Eles começaram a andar em silêncio, a respiração sentida passo a passo. Inhale. Exale. A sensação estranha de não-pertencimento ao que havia ao redor, como num mundo paralelo - uma vida interna que de tão sentida vira externa. Ao chegar no canteiro, ele pegou a mão dela e disse: “Quer namorar comigo?”. Disse isso com seriedade, com densidade até. “Sim”, ela respondeu com um quase sorriso.

Eles cruzaram até o outro lado de mãos dadas. O dia cada vez mais claro, a rua, em poucos segundos, parecendo mais cheia e mais distante. Um lixeiro varria o chão em frente, uma velha passava com um cachorro: cenas da realidade que simplesmente destoavam do isolamento do amor que ali acontecia e, por isso, nem chegavam a ser percebidas por eles.
“Pronto. Se quiser pode acabar comigo agora.”, disse ela, ao pisar na calçada. E ao dizer isso, viu nos olhos sérios dele o quase choro de novo - que naquele momento, se completava pela primeira vez. A lágrima em potência se fazendo em ato.O amor em potência se fazendo em ato, enfim. E entre lágrimas plenas e sentimentos plenos, ele olhou para ela, talvez pela primeira vez sem angústia ou medo – ela, que ali não era imagem estática ou alguma espécie de simulacro – e falou, enquanto caminhavam rumo a algum lugar:

“Nunca. Nunca vou acabar”.

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