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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 5 - Alexandre Boeira

O bar era pequeno, a cerveja não era uruguaia, o preço era mais caro, mas tinha uma mesa boa e internet wi-fi. Gramado era assim. Tudo bem, Martha estava na loja ao lado, de posse do cartão de crédito e feliz. Era tempo de ler mais um arquivo do morto priápico. Caso precisasse de alguma consulta, a internet seria útil. Colocou o notebook na mesa, revirou os bolsos e achou, além da pen-drive, uma nota de R$ 50,00. Feliz com a descoberta, Brasil nem reparou que esboçava um sorriso quando escolheu um dentre os tantos arquivos do Doutor Edmílson.

Tem dias que a gente abre a porta do escritório e torce para ninguém entrar. Esse é o dia em que eles entram. São meus clientes, mas preferia que não fossem. Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria fazer outra coisa, mas não sei.
- Merda-bosta-pica-cu-caralho-buceta.
Era assim mesmo, tudo junto e de um fôlego só, que Dona Nívea soltava o verbo. Mas deve ter sido coisa leve. Uma unha quebrada ao buscar algo de dentro da bolsa, um pequeno trupicão, algo de somenos. Se fosse drama sério ela usaria, no mínimo, suas expressões compostas.
Muito mais para provocar e muito menos para tentar demonstrar alguma ascendência sobre o vocabulário da subalterna, eu retruquei lá da minha sala.
- Pra senhora também, isso tudo aí e mais um pouco.
- Pro senhor, só a pica e o caralho. E não vem com essa de chefe cu-de-ferro que comigo não cola não. Eu falo assim e o senhor sabe. Acho bom ficar com esse rabo fedorento quietinho aí na cadeira e me deixar em paz. Vai cuidar da próstata que é a única coisa que ta aumentando de tamanho dentro dessas cuecas cagadas. Essas sunguinhas de boiola, de tão enfiadas, vivem tisnadas.
- Ô, ô, Qual é? Ta nos dias é? Ou é síndrome de MalCom?
- Mal comida era tua mãe ô... ô ... cu-de-anzol.
Se ficássemos assim mais uns três minutos o clima estaria pronto. Seria o dia de esparramar a Dona Nívea no sofá e mandar ver.
Só que o cliente interrompeu tudo. Pelo súbito silêncio da Dona Nívea dava pra notar que alguém havia entrado na ante-sala. Preciso mandar instalar aquelas coisinhas que avisam quando entra alguém. Como se chama aquele troço mesmo?
Mesma coisa de sempre. Dona Nívea entrou na sala, balançou a cabeça de um lado para o outro e fez cara de conformada. Cliente mais ou menos. Cobrar conforme tabela. Daria para as despesas e honorários leves, talvez até parcelados, não mais que isso. Antes que ela saísse, fingi que ia retrucar mais uma vez. Ela sabia que era blefe, mas mesmo assim levantou a mão direita espalmada, colocou a esquerda no peito e abaixou um pouco a cabeça em sinal de reverência. Estávamos em paz. Isso queria dizer nada de sexo selvagem depois que o cliente fosse embora.

Ele entrou como se entrasse na sala do gerente do banco para renovar o papagaio. Estava preparado para contar suas dificuldades, dizer que não sabia como tinha chegado até aquele ponto, ponderar que normalmente conseguiria resolver aqueles problemas sem ajuda externa, desculpar-se pelo descontrole momentâneo das questões legais. Claro, caso fosse necessário, estava de acordo em ser levemente humilhado antes de conseguir o que precisava de mim. Estava na cara. Era um empresário. Um empresário falido.
Esperou uns dois minutos antes de eu terminar meu telefonema virtual. O Desembargador Athayde estava renitente em me obedecer hoje.
Estendeu a mão direita na minha direção. Como sempre faço, antes de retribuir o gesto, examinei bem a mão do cliente. Examine sempre as mãos de alguém que precisa de advogado. Soou o alarme. A mão estava branca. Estava impregnada de um pó branco. Aliás, não só a mão. O antebraço, o braço e também tinha um pouco na camisa. Montei num porco.
- Qual é a tua cabeludo? Tá pensando o quê? Não sabe ler não? Ta escrito na placa lá na porta. Advocacia de Família! De família! Não defendo vagabundo não. Muito menos traficante.
- Como assim doutor? Não sei do que o senhor está falando?
- Como não sabe? E isso aí é o quê? Tava batendo o pó, preparando os papelotes e lembrou que precisava procurar um advogado? Saiu na hora do lanche e já volta? Que horas é o intervalo lá na boca?
- Ah... isso? Isso é farinha doutor. Farinha de trigo.
Olhei melhor. Passei o dedo. Levei à boca. Era farinha mesmo.
Depois que estendi a mão e cumprimentei o homem ele sentou.
- Como é que a gente fica doutor? Vai pegar meu caso? Quanto é teus honorários?
- Eu fico aqui e tu fica aí. Eu escuto e tu canta todo o serviço. Me conta tudo. Absolutamente tudo. Desde o dia que teu pai conheceu tua mãe. Os honorários dependem do que tu me contar.

João nasceu rico. Seu pai também já nascera rico, mas sua mãe não. Katarina era filha de pequenos agricultores, neta de imigrantes italianos que chegaram ao sul do Brasil apenas com as roupas do corpo e a vontade de fazer a vida na terra nova. Não fizeram. Nem seus avós, nem seus pais. Porém, quando os olhos azuis de Katarina já com seus 17 anos de idade alcançaram os olhos do filho do fazendeiro vizinho o destino de João começou a ser escrito. O único filho de Pedro e Katarina herdaria do pai as terras e o gado, entrando a mãe com os olhos, os cabelos fartos e a candura no olhar.
Ser rico, aliás, nunca foi demérito. João saiu-se trabalhador, estudioso e honrado. Somando um pouco de sorte aos negócios, transformou a fazenda em empresa rural, trocou o campo pela cidade, o casarão grande e desconfortável pela cobertura moderna. Cresceu, casou e teve filhos, ou melhor, filhas, gêmeas. Duas lindas meninas que mais tarde, enfronhadas de corpo e alma no gozo dos privilégios que o mundo oferece à exuberância feminina, passaram a lhe dar calafrios quando relembrava as fantasias que tinha com gêmeas quando adolescente.
E assim João seguia a vida, sem grandes percalços. Tinha casa, carro, mulher carinhosa e companheira, amigos próximos e tudo o mais. Contudo, faltava algo. Algo que não sabia o que era, mas que por vezes lhe assaltava à noite, roubava o sono e lhe dava uma sensação de vazio que tinha até vergonha de contar para Cristina. Vergonha não, medo. Sim, era medo que tinha, pois havia contado seus temores uma ou duas vezes. Tinha falado em frases erráticas, meio sem saber o que dizer, mas sendo sincero em sua angústia. A resposta da mulher, de tão direta, prática e insensível havia lhe deixado mais confuso do que antes. Ora, se eu tinha tudo na vida. Se não poderia me queixar, não tinha motivos para ter insônia ou temores, se nem mesmo sabia o que queria e era apenas um eterno insatisfeito, melhor mesmo é não contar nada. A partir daquele dia João deixou de falar disso. Quando acordava de madrugada, João comia.
Passou a frequentar a cozinha nas madrugadas insones. Não era um simples “ladrão de geladeira”. Não satisfazia seu vazio o jantar requentado ou o sanduíche preparado para comer de pé com a geladeira ainda aberta. De comilão compulsivo, passou para cozinheiro noturno e de cozinheiro chegou a gourmet, um gourmet das madrugadas.
Como era pragmático ao extremo e a mentalidade empresarial não lhe abandonava nem em tais ocasiões, não demorou em dirigir seu foco ao único público que tinha para degustar o resultado de suas angústias noturnas. Especializou-se em fazer o café da manhã da família.
Não era raro, ao contrário, cada vez mais frequente, o barulho dos pés descendo as escadas altas horas da noite denunciava um lauto desjejum ao alvorecer. Cucas, bolos, sucos das mais variadas frutas, pães diversos.
De início, a família achou apenas engraçado. Mais uma mania que logo passaria. A empregada achou bom, pois livre de preparar o café da manhã, de dez em dez minutos, passou cada dia a chegar um pouco mais tarde. Com o tempo, as mulheres da casa começaram a reclamar. Culpavam o receio de engordar, mas o medo era outro. João estava obcecado. A empresa deixara de ser prioridade, comparecia ao escritório somente depois das três da tarde e, antes das cinco, já estava no supermercado ou em lojas de especiarias planejando o próximo evento culinário. Os pães cresceram, a empresa murchou.
Tudo bem, João tinha suas economias. Passara a vida toda economizando e aplicando não sabia para que. Seu pai lhe ensinara a poupar para os dias de chuva. Que mal faria gastar um pouco com os bolinhos de chuva? Enquanto pudesse pagar a academia, o personal trainer, o cabeleireiro e o clube não seria importunado em casa.
Especializou-se em sonhos, sonhos de recheios diversos, verdadeiras bombas calóricas que Cristina rejeitava solenemente na sua frente, recriminando cada grama daquela ofensa ao modo correto que uma mulher que se preze poderia comer. Ah, mas ela comia. Comia escondida, comia na lavanderia, comia no carro, comia até na rua, surrupiando e escondendo um que outro, sujando a bolsa LV de açúcar e gordura.
Até que o dinheiro acabou. Não foi assim de uma hora pra outra. Foi aos poucos. Primeiro o carro deixou de ser do ano. Depois a empregada pediu as contas. Quando a empresa faliu João estava tentando há dias uma receita de sonho de forno com recheio de goiabada que teimava em ficar abaixo de seu padrão de exigência.
As filhas já estavam casadas, eram problema dos maridos, mas Cristina não perdoou. A última conversa que tiveram foi na cozinha. Ele de avental, olhando mais para o timer e para a luz do forno do que para ela, ela com as malas prontas e o táxi esperando, evitando chorar para não fraquejar e aceitar mais esse absurdo que ele lhe propunha. Como assim separados e morando juntos? Como assim pagar a pensão com café da manhã?

Depois que o padeiro contou sua história e tratamos os honorários ele saiu como quem sai do banco. Aliviado porque resolveu o problema mais urgente, mas sabendo que logo ali adiante ia pagar caro por isso. Também, quem mandou negociar? Meus honorários eu digo e pronto. Ela já estava classificado na categoria dos remediados. Além disso, onde já se viu querer pagar com croissant?
Ademais, esse divórcio vai ser difícil. A esposa, evidentemente ainda era apaixonada pelo padeiro. Quando as chances de comer a ex são menores, o preço não tem desconto. Se bem que as gêmeas ...
Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra Queria saber fazer outra coisa, mas não sei. Queria conseguir dormir à noite.
                Ah. E só para constar, eu só uso cuecas boxer.

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