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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 6 - Alexandre Boeira

Segunda-feira. Finalmente segunda-feira. O fim-de-semana durou um século. Como um Garfield às avessas, Brasil exaltava mentalmente o início de mais uma semana de trabalho. Afinal, como relaxar no Zoológico com o carro da polícia largado no estacionamento lotado e com quarenta e cinco quilos de erva na mala? Como comprar meias, tomar sorvete, comer galeto, colocar gasolina, andar de pedalinho, comprar chocolates, como fazer tudo isso se a cabeça já estava adiantada no tempo?  
Enquanto dirigia o carro, Brasil organizava suas prioridades. Precisava encontrar o tal Guinther. Precisava conversar informalmente com ele, com a Nathália, com a Sonja, se ela falasse português, com o João, com Cristina e com quem mais encontrasse daquela história maluca do morto. Precisava ligar para a Lucinha e, acima de tudo, precisava deixar a maconha no IGP para o laudo.
Quando se deu conta, depois de deixar o filho na escolinha, já tinha dirigido mecanicamente até a delegacia. Cacete, o IGP ficava do outro lado da cidade. Foda-se, prioridades invertidas. Passaria depois no IGP. Antes, precisava passar no portuga.
- Grande Brasil. Como estão as coisas nas Nações Unidas? Tem assembléia-geral hoje? Até o Mello apareceu.
Manoel tava com a macaca hoje. Precisava ser rápido, caso contrário teria de ouvir alguma das piadas velhas dele.
- Valeu vascaíno. As sacolas me salvaram na sexta. Tava tudo direitinho.
- Obrigado doutor. Tudo para agradar a freguesia. Vai o de sempre hoje?
- O de sempre. Caprichado.
Brasil sentou-se ao balcão. Manoel sabia que ele não bebia cerveja pela manhã. Não na rua, apenas em casa, mas isso Manoel não sabia. O português serviu o café cortado e o bolinho de batata e sentou-se também. Do outro lado do balcão e bem na frente do inspetor. Brasil passou os olhos pelo bar. Totalmente vazio. Só o dono e um cliente, ele. Não tinha saída, hoje era café com bolinho e bate-papo.  Já que teria de conversar mesmo, escolheu ele o assunto. Aquele que reverberava na sua cabeça.
- Me diz uma coisa Manoel, já ouviu dizer de morto de pau duro? Sabe se isso é possível?
- Se e possível eu não sei, mas que tem piada disso tem. Ah tem.
Ai, ai, ai. Lasquei-me como diria o próprio. Vou ter que aturar a piada. Mais uma vez sem escolha, deu um gole do café, mordeu o bolinho e, estoicamente, se ofereceu ao sacrifício.
- Conta então de uma vez. Tá louquinho pra contar que eu sei.
Manoel esperava apenas as duas dicas, a do café com bolinho e a da piada. Uma vez atendido, fez seu ritual. Pegou a caneta da orelha, anotou no caderninho mais uma dívida do inspetor, limpou a garganta, ajeitou-se na banqueta alta e mandou:
- Pois então. O gajo morreu. Morreu de morte morrida. No velório, uma coisa estranha estava a acontecer.
Eu mereço, pensou o inspetor. Manoel contava as piadas de modo interativo com a platéia, no caso, apenas ele. Era igual aos mágicos de festa infantil, se não perguntasse, não participasse, ele ficaria quieto, parado com aquele pano nojento no braço, esperando a plateia comprovar que ele era o centro das atenções.
- Estranho como?
Feita a pergunta. A piada prosseguiu. Até a próxima parada.
- O caixão não fechava. Não dava para fechar, pois o defunto estava de pau duro, ou de injeção, como se diz na minha terra. Não tinha jeito. Nem subindo na tampa. O clima já estava constrangedor quando se aproximou um gajo e falou para a viúva que teria de cortar o cacete do falecido para poder fechar o caixão. Assim se fez, mas surgiu outro problema. Onde colocar o instrumento do extinto? Não era coisa pouca, não cabia no bolso das roupas dele. Foi quando alguém teve a feliz ideia de socar o pau no cu do morto, e socaram mesmo. Mas daí, algo aconteceu.
- O que aconteceu, Manoel?
Já estava esperando, perguntou logo para abreviar a pausa dramática. Afinal, já tinha tomado o café, do bolinho restavam apenas uma ou duas mordidas e a piada não andava.
- O morto estava chorando. A viúva percebeu lágrimas na face do presunto. Foi quando ela falou.
- Falou o que Manoel?
Essa foi de boca cheia. Acabou o bolinho, estava mastigando o último pedaço.
- Ela disse assim: Ta vendo, amor? Ta vendo como eu te amava? Diz agora que pau no cu não doi?
Brasil riu para não perder o crédito que lhe valia as cervejas, o café e o rancho. Feito isso, bateu a mão espalmada no balcão, agradeceu Manoel pela piada e tomou o caminho da delegacia.
Ao entrar no prédio, esbarrou no Mello que saía correndo sem olhar para frente. O tranco seria leve, poderia até evitar, mas preferiu reforçar o resultado. Retesando o braço e ajustando a posição do ombro, preparou-se para escorar o magricela com cara de fuinha, tudo para interromper a pressa do corrupto. Quase jogou o Mello no chão. Só não caiu porque estava na soleira da porta e conseguiu segurar-se no batente. Brasil continuou o confronto, agora de modo verbal.
- Vai salvar o pai da forca? Ou vai recolher o dinheiro do jogo? Olha onde anda imbecil.
- Porra Brasil, olha tu. Se tu é trouxa e não gosta de dinheiro o problema é teu. E vê se para de me xingar que qualquer dia eu me irrito e acabo contigo.
- Demorou. Só se for agora. Faz tempo que eu quero embolachar essa tua cara feia.
A providência fez chegar naquele exato momento a delegada Hollanda. A única vaga reservada defronte à DP era, obviamente, para o carro dela. Os demais ficavam na frente do bar mesmo. Os confrontantes deram espaço para passar a chefe. E ela passou. Vestia um blazer preto justinho, aberto sobre uma camiseta branca que valorizava bastante seus atributos, ainda que muitos colares sobrepusessem o destino dos olhares dos dois policiais. Abaixo da linha da cintura, apenas uma bermuda jeans e, ultrapassadas as pernas torneadas nas horas de academia, nos pés, um par de botas na altura da canela. Obsessivamente arrumada para parecer o mais casual possível, ela sabia se fazer notar. Ao passar pelos policiais, dirigiu a cada um poucas e suficientes palavras.
- Que tá fazendo aqui Mello? Sabe que não quero ver tua cara na minha delegacia. A Corregedoria pode até dizer que não vê motivos para te suspender, mas eu é que não vejo motivos para te deixar trabalhando. Até estar tudo resolvido, tu não entra aqui. Entendeu?
- Sim senhora.
Prontamente, Mello respondeu. Esse arranjo estava perfeito para ele. Não precisava ir trabalhar, podia cuidar da sua vida, e estava mais que provado, inclusive pelo cdf do Brasil, que era a superiora que não permitia que ele trabalhasse.
- E tu Brasil. Já terminou aquele relatório?
- Está na sua mesa Doutora.
Assim que ela estava a uma distância segura, ambos retomaram os olhares. A conversa prosseguiu, mas era sobre outro assunto. Um tema amistoso. A única coisa que os colocava ao mesmo lado. Afinal, certos valores entre os homens estão acima das inimizades.
- Gostosa hein, Brasil?
- Muito gostosa. E ela sabe disso.
- Tu já pegou? Eu queria.
- Sem chance pra nós. Isso é carne que vira-lata não come.
Terminada a trégua, Mello virou-se e foi embora, não sem antes perguntar uma coisa que deixou Brasil intrigado.
- Aquela erva lá do aeroporto? Já foi pra perícia?
Brasil mentiu, assim como mentiria para a delegada que faria a mesma pergunta dez minutos mais tarde.
- Já ta lá sim, eu mesmo levei.
Antes que ele pudesse perguntar que raios o Mello queria com a maconha da operação de que não tinha participado, o puto já tinha ido embora.
Brasil então entrou na delegacia e foi direto até sua mesa. Precisava reorganizar suas prioridades, começar de verdade as investigações. Precisa encontrar outra linha, outra forma de checar os fatos. Era um homem de ação. Essa coisa de ler não era sua praia.
Sentado em sua cadeira giratória, organizou os objetos do mesmo modo em que retomou a organização dos pensamentos: o notebook aberto sobre a mesa, Guinther, Sonja e Nathália do lado das pessoas a investigar; a pen drive na gaveta com chave- a única -, João, o padeiro, na mesma casinha dos outros; seu caderno de anotações a sua frente, ávido de algo que valha a pena ser anotado, a mulher e as gêmeas do padeiro na casinha das pessoa a conhecer; o Taurus na gaveta sem chave, Lucinha nas pessoas com quem falar urgentemente. Pronto, já podia começar. Puta-que-pariu, esqueceu da maconha. Que ela ficasse no porta-malas mais um pouco.
Pegou o telefone, discou o número do IGP que já sabia de cor, atendeu a Carmem, telefonista mais velha que o prédio. Se resolvesse cochilar em uma das gavetas, passaria perfeitamente por qualquer dos hóspedes do necrotério.
- Instituto Geral de Perícias, bom-dia.
A voz de sempre, quente e suave. Carmem era a personificação do estelionato vocal, uma propaganda enganosa ambulante. Como era possível uma voz tão sensual estar ligada a um corpo decrépito como o de Carmem. E não era a idade, Carmem sempre foi feia, a coisa só fez piorar com o tempo.
- Eu queria pedir uma pizza. Metade presunto, metade ervas-finas.
Brasil sempre misturava as especialidades da casa.
- Bom dia Brasil. Como vai? Não aparece aqui faz tempo. Em que posso ajudar?
- Bom dia Carminha. Vou bem. E como vão as coisas por aí?
- Por aqui, o de sempre.
- Carmem, eu precisava falar com a Lucinha. O celular dela não atende. Podes me passar a ligação?
Brasil mentiu, evitava ligar para o celular de Lucinha desde quando buscou Martha na casa da sogra. Sempre que precisava falar com ela tentava dar um tom oficial à conversa. Trampo é trampo, trepada é trepada.
- Ela não está Brasil. Saiu faz pouco. Parece que tinha compromisso antes do almoço. Se quiseres, eu anoto o recado.
- Obrigado Carmem. Vou tentar de novo o celular. Acho que a tarde dou uma passada por aí. Tenho uma entrega pra levar. Um beijo (argh).
- Te espero Brasil, vou cobrar o café que estás me devendo. Te cuida.
Brasil não tinha saída. Suspirou fundo, olhou para o relógio e telefonou para o celular da Lucinha. Depois de quatro toques protocolares foi atendido por uma voz rouca e forte, voz de mulher, mas sem qualquer afetação ou delicadeza. Lucinha deixou claro desde a primeira fala quem mandaria naquele telefonema.
- Deve ser coisa séria pra me ligar Brasil. Achei que nunca mais íamos nos falar. Parece até que abusei da donzela. Ou então é a Martha que te colocou definitivamente o cabresto. Foi isso?
- Bom dia para ti também.
Brasil olhou de novo para o relógio, 11 horas, ainda era bom dia.
- Não foi para me dar bom dia que tu me ligaste. Diz logo o assunto.
- Coisa de trabalho Lucinha. Coisa de trabalho. Preciso falar contigo. Que horas volta pro IGP?
- Hoje não volto mais. Vou tirar o dia de madame, estou de folga de tarde. Bem que a gente podia ...
- Bem que a gente podia conversar sobre o homicídio que estou investigando. Preciso te fazer umas perguntas.
- Porra, Brasil. Agora deu pra ficar ofendido com cantada? Mais um pouco e vira viado. Olha que eu vou espalhar por aí que tu trocou de lado. Tudo bem. Assunto de trabalho, mas vai ter que rolar ao menos um almoço, e por tua conta. E não vale no portuga. Pensa um lugar melhor e já me adianta o assunto.
- Tudo bem, podemos marcar uma e meia na Parrilla.
- Ai, ai, ai. Não conhece outra opção que não seja carne e cerveja? Homens. Tá bom. Combinado. Vou estar lá. E o assunto?
- Morto fica de pau-duro?
Lucinha deu uma sonora gargalhada antes de desligar. As últimas palavras ficaram reverberando na cabeça de Brasil. Como assim não me preocupar? Como assim eu estava menos morto do que duro? Que papo é esse?
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- A intumescência ou detumescência peniana são processos que requerem uma complexa estrutura e estão diretamente relacionados aos elementos componentes do tecido conjuntivo.
Brasil tranquilizou-se e pediu a primeira cerveja, pelo começo do discurso da Lucinha não havia a menor hipótese de a conversa evoluir para o relacionamento entre eles. Nada mais broxante que discurso acadêmico, nada mais broxante que mulher falando a palavra pênis com uma expressão de curiosidade científica. Lucinha seguia a aula. Desconfortável ver ela ali falando sobre pau-duro, fazendo gestos e desenhos com as mãos no ar que mais pareciam destinados a pré-adolescentes curiosos.
- Dos elementos do tecido conjuntivo, em especial as fibras do tecido elástico, vale-se o mecanismo de ereção, o qual envolve processos fisiológicos e hemodinâmicos e, ainda que resulte de uma resposta parassimpática, involuntária, seu encadeamento, em regra, não se coaduna com a rigidez cadavérica, em especial pela necessidade do relaxamento do músculo liso nas paredes das artérias.
- Então, pelo que entendi, morto não fica de pau-duro? Como se explica então o Dr. Edmílson apontando o bigulim pro teto? Era prótese?
- Calma Brasil, ainda não cheguei lá.
- A ereção assim como a conhecemos. Ela falou a palavra conhecemos olhando fixamente nos olhos do inspetor. Essa ereção não pode ocorrer no cadáver. Contudo, a literatura médica é farta em descrições sobre a ereção da morte. Eu conferi, Brasil, ela existe, é possível.A ereção da morte, anjo da luxúria, ou ereção terminal é citada até na wikipedia.  É uma ereção pós-mortem, tecnicamente um priapismo, observada em corpos de humanos do sexo masculino que foram executados, principalmente por enforcamento. O fenômeno tem sido atribuído a pressão sobre o cerebelo criado pelo laço da forca.
- O meu cadáver não se enforcou. Tenho certeza disso Lucinha.
Brasil já estava no terceiro copo e beliscava uma linguicinha enquanto prestava atenção à interlocutora. Não era só ele. Lucinha falava alto e gesticulava muito. O assunto havia encantado uma mesa de senhoras. Brasil espetou um naco de lingüiça no palito, a ver que ela ficou em posição ereta, mostrou sua obra para as ouvintes da mesa ao lado. Os rostos tomaram outra direção de imediato. Lucinha sorriu de canto e continuou.

- A morte por outras causas também pode resultar em tais efeitos. Fez uma pausa dramática, havia chegado ao ponto. Inclusive a morte por bala no cérebro, quando causa danos aos vasos sanguíneos principais. O priapismo pós-morte é um indicador de morte rápida e violenta.
Foi a vez de Brasil sorrir. Aproveitou para levantar o braço e pedir outra Patrícia. A partir dali, o almoço foi agradável. Era finalmente o primeiro progresso alcançado no caso do Dr. Edmílson.
Tudo foi agradável até Brasil receber o carro do manobrista. Antes de despedir-se, Lucinha de pé, ao lado da janela do motorista perguntou apenas por perguntar.
- E a maconha, Brasil? Não levou ainda pro IGP? A essa hora eles não vão mais receber hoje. Melhor fazer isso logo, Brasil. Não é bom andar por aí com o porta-malas cheio.
Puta-que-pariu. Puta-que-pariu. Era o fim da breve alegria do inspetor. 

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