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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

CONTO: A REPARTIÇÃO DOS PÃES - Clarice Lispector

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

MICROCONTO (Mário Garrastazu Médici)

Antes de descobrir, em lugar da areia ansiada por sete anos, a parede de pedra ainda mais sólida, a colherinha se partiu em duas.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CONTO: BRONCOBURGER - Mário Garrastazu Médici

Eu de novo, Asta.
Tua voz fica mais rouca na caixa postal.
O celular que te dei de presente deve estar no silencioso como ensinei, para não perturbar o sono da Débora. Vocês já devem estar dormindo. Mas tive que ligar outra vez. Queria muito falar com a pequena, ouvir a vozinha dela, dizer o quanto eu procurei esse pinguim azul que ela viu no programa, Pablo, não é?
É uma da manhã, já desligaram a tevê, só sobraram as garçonetes a me olhar enviesado. Se bem que elas sempre me olharam torto, desde a primeira quarta-feira, tu conhece o jeitão do nego, uma piadinha saliente aqui, um olhar malicioso ali, se deixarem já me encosto, já dou um abraço, já passo a mão.
Não é por causa delas que eu venho, pelo menos não é só por causa delas. Sozinho faz um ano nessa cidade, o sujeito tem que arrumar alguma diversão. As minhas são simples, tu conhece bem. Uma boa carne, cerveja bem gelada, o jogo do grêmio, um retoço com as gurias.
Eu sei que essa parte te deixa mais triste, alemoa, sei que é essa parte que vem tornando nossos telefonemas cada vez mais silenciosos, uns silêncios prolongados que chegam a arranhar o ouvido. Eu tô aqui trabalhando por nós, não esquece, por nós e pela Debrinha, pra gente um dia morar num lugar com nome de cidade, porto, santo, o caralho, e não numa linha. Porque linha sempre me lembrou aqueles hipnotizadores de feira, que deitavam um traço no chão e punham a galinha inerte, sem poder se mover, fixada naquele risco. Não quero ser galinha a vida inteira na Linha Genehr, amor. Sei que sempre vou ser pinto miúdo, mas quero ter os meus voos, não importa sejam curtos e fracos, mas os meus voos. E que os do meu ninho possam voar comigo.
Por isso essa mudança pra cá, por isso esse ano todo morando na Capital, vendendo colchão de mola desde as sete da manhã de segunda a sábado, visitando trinta clientes por dia, cafezinho, sorriso, aperto de mão sebosa. Por isso os plantões na loja nos domin...

Oi. Eu de novo. Bosta de caixa postal.
Pois é, nos domingos. Daí só me sobra a quarta de noite pra ver o tricolor, aqui nessa lanchonete descobri um sanduíche de carne de um quarto de quilo, um almondegão de picanha com cebola e queijo, chama BroncoBurger, com duas cervejas bem geladas desce que é uma beleza. Hoje já tomei quatro, daí fico pensando nessas coisas, agora vem a garçonete mais gostosa me mandar embora, já acabou o jogo, fechou a cozinha, terminou a festa. É a mais novinha, o nome dela é Carol e devolve com asco meus olhares, mas me lembra de ti, Asta.
De como tu era bonita, as mesmas ancas, o mesmo olho azul, o cabelo louro escorrido.
Na verdade me lembra de mim, de um jeito que eu tinha de te olhar, de me encantar a cada movimento. E tu ainda é uma mulher maravilhosa, alemoa. Não sou só eu quem acha, todo o povo da Linha sempre disse que eu tinha muita sorte, o Welter da venda, esse que tu disse que visitou teu pai, o Welter sempre com o olho espichado pra tua bunda, tuas tetas, pensa que eu não via mas eu via.
Hoje eu tomei essas seis ou sete cervejas com meu BroncoBurger de sempre e deu vontade de voltar, Asta. Deu vontade de devolver o Gol da firma, de mandar o supervisor sentar no conjunto de molas - sem a capa protetora -, de pegar o ônibus da madrugada e ver vocês acordarem. Eu sei que já tem mais de três meses da última vez que  vi a Débora, e que já tinha duas semanas que eu não ligava. Mas a vida corre demais aqui nessa merda de terra, esse mês dobrei a meta, viu que tinha um dinheirinho extra pra tevê grande nova que tu queria?
Daí esque...

Alô. Cacete.
Esqueci.
Esqueci que vim para Porto Alegre trabalhar por vocês, para deixarmos pra trás a Linha de vez. Juntos.
Esqueci.
Entre um folder de colchão e os travesseiros de pena de ganso, entre tirar pedido sobre pedido e os extratos diários nesse telefone de tela engordurada dos infernos que me deram, entre uma cerveja e uma olhada nas coxas das gurias que vêm com os namorados ver o jogo, esqueci.
Só que hoje lembrei, Asta.
Sabe como foi?
Veio um casal diferente hoje. Acho que não sabiam que era dia de jogo e trouxeram uma filhinha do tamanho da Débora. Sentaram numa mesa perto da minha, alheios ao burburinho do meio tempo, ao pagode improvisado que se instala sempre que o tricolor está ganhando. Pediram seus sanduíches, refrigerantes, batatinha sorriso para a menina.
E ela começou a sambar pra mim, a espevitada. Bem no compasso certo do bumbo, pezinho pra frente, pezinho pra trás, no ritmo da batida e sem tirar o olho de mim. De início, já tocado pela décima cerveja e pelo short jeans de uma morena bunduda dançando a menos de dois metros, pensei em dizer sai pra lá, filhinha, que isso é coisa de gente grande. Mas a guria continuava aquele passinho, com um sorriso inexplicável dirigido pra mim. Um sorriso solar, de bergamota doce sentado na grama de casa, lá nos fundos, jogando as sementes na cabeça do cusco. Não pra machucar, mas pra ele vir se esfregando querendo carinho. Um sorriso de goiabada fervendo saindo do tacho pra sapecar o beiço, de pé quente pisando a terra fria e fofa do fundo do açude num dia daqueles. Um sorr..

(Por que fazem essas merdas com um tempo tão curtinho?)
Um sorriso desses que estou perdendo todos os dias e que o puto do Welter deve desfrutar cada vez que tu vai no mercado com a Débora, buscar um feijão, um leite, um melado, e ele oferece bala de troco, a azedinha de morango que a pequena gosta,  com aqueles dedos ossudos nojentos.
O que  esse veado foi falar com o teu pai? Foi pedir tua mão? Tu já é casada, ele que vá atirar nas pombas do Seu Augusto, que tem aquelas três gordas encalhadas. Vontade de meter a mão na cara desse sujeito, nunca me desceu. Aposto que teu pai gostou, né? O velho sempre quis um alemão do cu vermelho pra matear com ele no sítio, nunca engoliu a ideia de ter genro pardo. Foda-se. Tu gostava, tu sempre gostou, tu costumava adorar os amassos no fuca atrás da olaria do Schenkel. Depois foi rareando, foi esfriando, não é assim mesmo depois que nascem os piás?
Tô com saudade.
Dezesseis cervejas. Um quadrado perfeito de garrafas verdes na minha frente. Quatro por quatro. Bonito, linhas retas, sem cantos pontudos demais. Bem o contrário de nós, com tanta felpa e rebarba se desprendendo da madeira e machucando os dedos.
Vou embora. Agora vão fechar mesmo a bodega, não tem mais jeito.
Queria mesmo que não fosse tão tarde.
Que eu não estivesse com a língua tão enrolada, com a cabeça assim oca, que a Débora ainda pudesse estar acordada.
Acordada para me ouvir dizer boa-noite-filhinha-vai-ficar-tudo-bem-papai-te-ama-e-vai-voltar-logo e não dormindo abraçada na merda de pinguim azul que o filho da pu...

***


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CADERNOS DO DR. EDMÍLSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 7 - Alexandre Boeira

Era o que se podia fazer. Quando a ação fica para depois a hora é da ficção. O almoço com Lucinha tinha levado mais tempo do que o planejado, mesmo que tenha valido a única informação que apontava para uma linha de investigação mais palpável. A entrega da maconha ficara mais uma vez adiada. Para não sentir a culpa de mais um dia de parcos progressos, Brasil resolveu ler mais um arquivo do Dr. Edmílson, escrito antes do cerebelo do sofrível escritor ser invadido pelo pequeno projétil .32 de propriedades afrodisíacas. Ele havia acertado, Smith & Wesson .32, outra informação valiosa da Lucinha. Colocou em seu planejamento pesquisar o cadastro de armas apreendidas e revirou mais uma vez os bolsos. Ao encontrar a pen-drive resignou-se. Após um longo suspiro, escolheu mais um arquivo das anotações do morto. Já havia checado os nomes e os processos dos clientes, todos existiam, mas que parecia ficção, ah parecia.   Clicou duas vezes no ícone imitando uma pasta arquivo amarela - pensou consigo pela enésima vez, porque amarela? - e o texto apareceu.

Não deu. Não aguentei. Apertei mesmo, e com vontade, o indicador dobrado e o polegar por cima, com força.
Também, né? A gente aperta cada merda o dia todo. Acorda, aperta a pasta de dentes, aperta a torneira da pia, aperta a descarga do vaso, aperta e sacode até a ponta da glande para evitar a última e teimosa gota. Aliás, nem adianta, ela pinga na cueca assim mesmo.
Mais adiante a gente aperta os botões do microondas, o botão da cafeteira, aperta a asa da xícara para levar o café à boca. Não satisfeito, aperta a merda do nó da gravata, aperta a fivela do cinto, e assim vai.
Pensa que para quando sai de casa? Aperta o botão do alarme do carro, aperta o cinto de segurança, aperta o botão para abrir a garagem, aperta para fechar.
Chegando ao trabalho? Claro que continua. Aperta a senha para entrar no prédio da repartição, aperta o botão para chamar o elevador, o botão para o andar certo, às vezes até aperta o errado.
E mãos? Quem inventou essa coisa de apertar mãos? É tanta mão apertada que nem sei mais qual é a minha.
Foi por isso então, Dr. Acho que estou plenamente justificado. Nem sei por que tanta celeuma por causa disso. Um exagero isso de levar a esse ponto um fato de tamanha insignificância. A mesma coisa eu disse lá na delegacia. Disse também que um Delegado tem mais o que fazer, mas não pretendi ofender ninguém.
Quando recebi o primeiro tapa, sequer perdi a compostura. Também não me ofendi. Eu entendo. Essas coisas acontecem, em especial na delegacia. Eles estão acostumados com outro tipo de gente. Respeito? Não Doutor, o senhor não entendeu. Tudo bem, o delegado também não entendeu. Isso não tem nada a ver com respeito ou falta dele, foi apenas oportunidade, uma oportunidade de retribuir às mãos que apertam tanta porcaria, dar a elas um momento de prazer. E olha que foi só uma que se esbaldou. Foi isso que pensei quando vi ali, bem na minha frente no elevador, aquela pontinha de seio, aquele biquinho fujão, um mamilo cor-de-rosa escapulindo do decote da menina, uma verdadeira Larissa Riquelme brasileira. Aquele mamilo estava falando comigo, estava pedindo. Tanto pediu que eu apertei. O senhor também apertaria Dr. Edmílson.
Foi assim que ele entrou no escritório, sem freios, literalmente. Era um Fenemê na banguela. Passou reto pela Dona Nívea, que nada viu sobre seu potencial financeiro, entrou sala adentro contando sem cerimônias sua história, depenicando a paciência que já me faltava.  Falou sem parar, olvidando de perguntar se alguém queria ouvir. Falou de pé, sem respiro ou pausa e o pior, antes que eu pudesse encenar meu telefonema imaginário. Ele me pegou de surpresa, quase literalmente com as calças na mão. Sou uma pessoa metódica, chego as oito horas no escritório, as oito e quinze tomo o primeiro cafezinho, as oito e meia acendo o primeiro dos oito cigarros que fumo por dia. A primeira consulta sempre é as nove e meia. Ele chegou as dez para as nove, quase me pegou na cagadinha das oito e quarenta. O cheiro ele deve ter sentido. Dona Nívea sente lá da outra sala.
Minhas primeiras impressões foram: ele sabe meu nome, ele deve ter algum retardo leve e, por último, aquele roxo no olho não era maquiagem, foi porrada mesmo. Em retribuição à sua entrada deselegante, já saí cagando na cabeça dele. Nem dez horas da manhã e já era a segunda.
- Vem cá ô alicate, tu é besta mesmo ou tá só se fazendo? Tu não sabe não que o processo que começa contigo sendo preso termina na Vara Criminal? Não sabe ler a placa? Advogado de família. De família! Te manda já daqui e vai apertar os colhões de um criminalista.
- Não doutor, não é esse o caso. Não foi por causa disso que eu lhe procurei.
- Ah não? Então tu conta essa história sempre? É pra quebrar o gelo?
- Bem doutor, tem relação com a história, mas não é por causa de processo criminal que eu estou aqui. É por causa do divórcio. Minha mulher pediu.
Minha cara de besta deve ter autorizado o cidadão a contar o resto da história, pois ele sentou, não sem antes me estender a mão, a qual prontamente recusei sem sequer examiná-la dessa vez. Apertar a mão desse aí? Eu fora.
Tem dias que a gente abre a porta do escritório e torce para ninguém entrar. Esse é o dia em que eles entram. São meus clientes, mas preferia que não fossem. Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria fazer outra coisa, mas não sei.
Antenor o nome dele, deveria ser Aparício, mas nem toda piada já vem pronta. Servidor da Secretaria Estadual da Fazenda, concursado aos vinte anos e chefe de seção desde os trinta, Antenor Graça Ramos, casado e sem filhos, levava uma vida estável até o dia em que completou quarenta e cinco anos de idade. Nesse dia passou o aniversário absorto em seus próprios pensamentos, uma tortura inimaginável. A esposa estranhou, mas não muito, a simpatia nunca fora a característica marcante daquele homem baixo e de bigodes ralos que teimava manter.
Na semana seguinte ele decidiu, levaria sua vida normal, mas não se privaria de nada que o mundo até então lhe sonegara. Trabalharia como sempre, seguiria pontual, reto e honesto. Porém, não reprimiria mais os desejos das mãos, das mãos que formigavam quando os olhos davam em uma bunda, umas coxas ou uns peitos. Ai, uns mamilos rosados. A partir daí, Antenor desandou a apalpar, amaciar, afofar, tatear, beliscar e principalmente, apertar.
Começou com a estagiária, um apertão nas costelas, desajeitado e inexperiente. Crica, 18 anos, nem deu bola. Achou graça do tio da repartição. Ele não, ele gostou e não parou mais.
Tudo ia bem. Os problemas eram conforme o esperado, e o prazer que o ato lhe dava compensava qualquer cara feia, safanão ou mesmo alguns tapas no rosto.
Revigorou-se. Até o sexo em casa melhorou, embora jamais apertasse Regina. Isso não era coisa para se fazer em casa.
Então o óbvio aconteceu. Antenor apertou o mamilo errado e a casa caiu. Foi preso em flagrante. O bafo foi forte, a dona dos mamilos que a ele se mostraram irresistíveis não estava no elevador da secretaria para visitar uma amiga, fazer uma consulta ou mesmo protocolar um documento. Antenor não sabia, mas Márcia era a noiva do chefe da equipe de apoio da Divisão do Trânsito de Mercadorias. A equipe de apoio nada mais era que o grupo de policiais militares que acompanhava os fiscais da chamada Turma Volante nas operações mais perigosas.
O chefe preferiu nada relatar ao Secretário ou ao superior imediato de Antenor, o que lhe foi até vantajoso quanto ao emprego e cargo de chefia. Porém, não abriu mão da fazer Antenor conhecer a salinha da guarda. Depois disso, foi conduzido discretamente, no próprio carro da repartição, ao plantão da polícia judiciária, sob a acusação de incurso no art. 213 do Código Penal.
O fato estaria rapidamente solucionado na polícia civil não fosse o diálogo travado com o delegado, conforme Antenor mesmo antecipou-se em narrar. Afinal as relações entre as polícias não indicam que o delegado agasalharia a forçada capitulação do brigadiano, apenas porque a vítima era a sua noiva. A desclassificação do fato para importunação ofensiva ao pudor ou para perturbação da tranqüilidade era certa.
- Tudo bem. Que tu és tarado eu já sei. O que eu não sei ainda é onde eu entro nessa história. Dá para fazer o favor de resumir o babado?
- Estou no ponto doutor. É aí que a coisa desandou.
Conforme ele mesmo havia dito, estava preparado e achava completamente naturais as reações físicas das vítimas e das pessoas a elas chegadas. Aceitava como preço justo os safanões na sala da guarda e os tabefes na delegacia. A merda se deu quando ainda durante a lavratura do flagrante, a fim de adiantar o serviço e, antes mesmo do término das negociações que se travavam para o ajuste e o arquivamento informal do inusitado qüiproquó, no intuito de fazer cumprir o disposto no art. 5º, inciso LXIII da Constituição, o escrivão de polícia teve a infeliz idéia de telefonar para a esposa do preso.
Regina não gostou nem um pouco de saber da narrativa detalhada que o servidor lhe passou dos fatos. Gostou menos ainda quando compareceu ao distrito policial e lhe foi reservada a cadeira ao lado de Marcinha, a vítima do bolinador, onde sentou contrariada para esperar a solução do caso. Será que essa moça nunca ouviu falar em sutiã? Recato nada tem a ver com a lei da gravidade e seus efeitos.
Durante a grave discussão que teve com Antenor quando chegaram em casa, embora reafirmasse que isso não seria a razão do rompimento, Regina bradou em três oportunidades que tais seios expostos assim sem pudor não podiam ser de mulher decente, e que se ele não gostava dos seios dela, porque então lhe negou os implantes que tanto pedia.
Pois bem, resolvida a questão criminal, cujo processo morreu na casca, restou a ação de divórcio, da qual Antenor já havia sido citado e que continha pedido indenizatório por danos morais e desconto em folha da pensão postulada no máximo jurisprudencialmente praticado.
- Somente o senhor pode me ajudar, Dr. Edmílson. Suas habilidades são essenciais nessa causa.
- Teu caso é médico. A habilidade que tu precisa é cirúrgica.  Só a amputação de ambas as mãos te salva. Passa teus dados para a Dona Nívea, assina com ela a procuração e o contrato de honorários. Ela vai te dizer que documentos tens de me trazer. Só mais uma coisa. Olha lá, hein? Se relar a mão naquela bunda eu te capo.
Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria saber fazer outra coisa, mas não sei.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

CONTO: A ALMOFADA DE PENAS - Horácio Quiroga

Sua lua-de-mel foi um longo estremecimento. Loura, angelical e tímida, o temperamento duro do marido gelou suas sonhadas criancices de noiva. Ela o amava muito, no entanto, às vezes, sentia um ligeiro estremecimento quando, voltando à noite juntos pela rua, olhava furtivamente para a alta estatura de Jordão, mudo havia mais de uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-lo.

Durante três meses — tinham casado no mês de abril — viveram numa felicidade especial.

Sem dúvida ela teria desejado menos severidade nesse rígido céu de amor, mais expansiva e incauta ternura; mas a impassível expressão do seu marido a reprimia sempre.

A casa em que viviam influenciava um pouco nos seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Por dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de frio desagradável. Ao atravessar um quarto para outro, os passos encontravam eco na casa toda, como se um longo abandono tivesse sensibilizado sua ressonância.

Nesse estranho ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Porém tinha terminado por abaixar um véu sobre os seus antigos sonhos, e ainda vivia dormida na casa hostil, sem querer pensar em nada até o marido chegar.

Não é incomum que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente dias e mais dias; Alicia não melhorava nunca. Por fim uma tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço dele. Olhava indiferente para um e outro lado. De repente Jordão, com profunda ternura, passou a mão pela sua cabeça, e Alicia em seguida se quebrou em soluços, e o abraçou. Chorou demoradamente seu discreto pavor, redobrando o choro diante da menor tentativa de carícia. Depois, os soluços foram-se acalmando, e ainda ficou um longo tempo escondido no seu ombro, quietinha, sem pronunciar uma palavra.

Foi o último dia que Alicia esteve de pé. No dia seguinte amanheceu desacordada. O médico de Jordão a examinou com toda a atenção, recomendando muita calma e repouso absolutos.

— Não sei — disse para Jordão na porta da casa, em voz ainda baixa. — Tem uma grande debilidade que não consigo explicar, e sem vômitos, nada... Se amanhã ela acordar igual a hoje, você me chama depressa.

No dia seguinte ela piorou. Houve consulta. Constatou-se uma anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alicia não teve mais desmaios, mas ia visivelmente andando para a morte. Durante o dia todo, o quarto estava com as luzes acesas e em total silêncio. As horas se passavam sem se ouvir o mínimo barulho. Alicia dormitava. Jordão vivia quase que definitivamente na sala, também com as luzes acesas. Andava sem cessar de um extremo para outro, com incansável obstinação. O tapete abafava seus passos. Algumas vezes entrava no quarto e continuava seu mudo vaivém ao longo da cama, olhando para sua mulher cada vez que caminhava na sua direção.

Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações, confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão. A jovem, de olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama. Uma noite ela ficou repentinamente com o olhar fixo. Em seguida abriu a boca tentando gritar, e suas narinas e lábios se molharam de suor.

— Jordão! Jordão! — gritou, rígida de espanto, sem parar de olhar o tapete.

Jordão correu para o quarto, e, ao vê-lo aparecer, Alicia deu um brado de horror.

— Sou eu, Alicia, sou eu!

Alicia olhou para ele com olhar extraviado, olhou para o tapete, voltou a olhar para ele, e depois de um longo momento de estupefata confrontação, serenou. Sorriu e pegou entre as suas as mãos do marido, fazendo carícias e tremendo.

Entre suas alucinações mais obstinadas, houve um antropóide, apoiado no tapete sobre os próprios dedos, que mantinha os olhos fixos nela.

Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia após dia, hora após hora, sem se saber absolutamente por quê. Na última consulta, Alicia jazia em estupor, enquanto eles a pulseavam, passando de um para outro o pulso inerte. Observaram-na um longo momento em silêncio e encaminharam-se para a sala.

— Pst... — Deu de ombros, desanimado, seu médico. — É um caso sério... pouco se pode fazer...

— Era só o que me faltava! — gritou Jordão. E tamborilou bruscamente sobre a mesa.

Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia, que se fazia mais grave pe!a tarde, mas que cedia sempre nas primeiras horas da manhã. Durante o dia, sua doença não avançava, mas de manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente à noite a sua vida se fosse em novas asas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de sentir-se derrubada na cama com um milhão de quilos por cima. A partir do terceiro dia esse desmoronamento não a abandonou mais. Apenas podia mexer a cabeça. Não deixou que pegassem na sua cama, nem sequer que arrumassem a almofada. Seus terrores crepusculares avançaram na forma de monstros que se arrastavam até sua cama e subiam com dificuldade pela colcha.

Perdeu depois o conhecimento. Nos dias finais, delirou sem cessar a meia-voz. As luzes continuavam fúnebres e acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio monótono que saía da cama, e o rumor abafado dos eternos passos de Jordão.

Alicia morreu, por fim. A empregada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia, olhou um momento com estranheza para a almofada.

— Senhor! — chamou ao Jordão em voz baixa. — Na almofada há manchas que parecem ser de sangue.

Jordão se aproximou rapidamente. Também se agachou. Efetivamente, sobre a fronha, de ambos os lados da cavidade que tinha deixado a cabeça de Alicia, se viam algumas manchinhas escuras.

— Parecem picadas — murmurou a empregada depois de um momento imóvel na observação.

— Aproxime-o da luz - disse Jordão.

A moça levantou a almofada, mas em seguida deixou-a cair, e ficou olhando para ele, lívida e trêmula. Sem saber por quê, Jordão percebeu que seus cabelos se eriçavam.

— O que é que há? — murmurou com voz rouca.

— Pesa muito — falou a empregada, sem parar de tremer.

Jordão levantou a almofada; pesava extraordinariamente. Saíram com ela, e sobre a mesa da sala Jordão cortou a fronha e a capa. As penas superiores voaram, e a empregada deu um grito de horror com a boca inteiramente aberta, levando as mãos crispadas às bandós. Sobre o fundo, entre as penas, mexendo devagar os pés aveludados, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchada que quase não se lhe via a boca.

Noite após noite, a partir do dia em que Alicia tinha ficado doente, ele tinha aplicado sigilosamente sua boca — sua tromba, melhor dizendo — às têmporas da mulher, chupando-lhe o sangue. A mordida era quase imperceptível. A remoção diária da almofada tinha impedido sem dúvida seu desenvolvimento, mas assim que a jovem não conseguiu mais se mexer, a sucção foi vertiginosa. Em apenas cinco dias e cinco noites, tinha esvaziado Alicia.

Esses parasitos das aves, diminutos no seu meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece ser para eles particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nas almofadas de penas.