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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CADERNOS DO DR. EDMÍLSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 7 - Alexandre Boeira

Era o que se podia fazer. Quando a ação fica para depois a hora é da ficção. O almoço com Lucinha tinha levado mais tempo do que o planejado, mesmo que tenha valido a única informação que apontava para uma linha de investigação mais palpável. A entrega da maconha ficara mais uma vez adiada. Para não sentir a culpa de mais um dia de parcos progressos, Brasil resolveu ler mais um arquivo do Dr. Edmílson, escrito antes do cerebelo do sofrível escritor ser invadido pelo pequeno projétil .32 de propriedades afrodisíacas. Ele havia acertado, Smith & Wesson .32, outra informação valiosa da Lucinha. Colocou em seu planejamento pesquisar o cadastro de armas apreendidas e revirou mais uma vez os bolsos. Ao encontrar a pen-drive resignou-se. Após um longo suspiro, escolheu mais um arquivo das anotações do morto. Já havia checado os nomes e os processos dos clientes, todos existiam, mas que parecia ficção, ah parecia.   Clicou duas vezes no ícone imitando uma pasta arquivo amarela - pensou consigo pela enésima vez, porque amarela? - e o texto apareceu.

Não deu. Não aguentei. Apertei mesmo, e com vontade, o indicador dobrado e o polegar por cima, com força.
Também, né? A gente aperta cada merda o dia todo. Acorda, aperta a pasta de dentes, aperta a torneira da pia, aperta a descarga do vaso, aperta e sacode até a ponta da glande para evitar a última e teimosa gota. Aliás, nem adianta, ela pinga na cueca assim mesmo.
Mais adiante a gente aperta os botões do microondas, o botão da cafeteira, aperta a asa da xícara para levar o café à boca. Não satisfeito, aperta a merda do nó da gravata, aperta a fivela do cinto, e assim vai.
Pensa que para quando sai de casa? Aperta o botão do alarme do carro, aperta o cinto de segurança, aperta o botão para abrir a garagem, aperta para fechar.
Chegando ao trabalho? Claro que continua. Aperta a senha para entrar no prédio da repartição, aperta o botão para chamar o elevador, o botão para o andar certo, às vezes até aperta o errado.
E mãos? Quem inventou essa coisa de apertar mãos? É tanta mão apertada que nem sei mais qual é a minha.
Foi por isso então, Dr. Acho que estou plenamente justificado. Nem sei por que tanta celeuma por causa disso. Um exagero isso de levar a esse ponto um fato de tamanha insignificância. A mesma coisa eu disse lá na delegacia. Disse também que um Delegado tem mais o que fazer, mas não pretendi ofender ninguém.
Quando recebi o primeiro tapa, sequer perdi a compostura. Também não me ofendi. Eu entendo. Essas coisas acontecem, em especial na delegacia. Eles estão acostumados com outro tipo de gente. Respeito? Não Doutor, o senhor não entendeu. Tudo bem, o delegado também não entendeu. Isso não tem nada a ver com respeito ou falta dele, foi apenas oportunidade, uma oportunidade de retribuir às mãos que apertam tanta porcaria, dar a elas um momento de prazer. E olha que foi só uma que se esbaldou. Foi isso que pensei quando vi ali, bem na minha frente no elevador, aquela pontinha de seio, aquele biquinho fujão, um mamilo cor-de-rosa escapulindo do decote da menina, uma verdadeira Larissa Riquelme brasileira. Aquele mamilo estava falando comigo, estava pedindo. Tanto pediu que eu apertei. O senhor também apertaria Dr. Edmílson.
Foi assim que ele entrou no escritório, sem freios, literalmente. Era um Fenemê na banguela. Passou reto pela Dona Nívea, que nada viu sobre seu potencial financeiro, entrou sala adentro contando sem cerimônias sua história, depenicando a paciência que já me faltava.  Falou sem parar, olvidando de perguntar se alguém queria ouvir. Falou de pé, sem respiro ou pausa e o pior, antes que eu pudesse encenar meu telefonema imaginário. Ele me pegou de surpresa, quase literalmente com as calças na mão. Sou uma pessoa metódica, chego as oito horas no escritório, as oito e quinze tomo o primeiro cafezinho, as oito e meia acendo o primeiro dos oito cigarros que fumo por dia. A primeira consulta sempre é as nove e meia. Ele chegou as dez para as nove, quase me pegou na cagadinha das oito e quarenta. O cheiro ele deve ter sentido. Dona Nívea sente lá da outra sala.
Minhas primeiras impressões foram: ele sabe meu nome, ele deve ter algum retardo leve e, por último, aquele roxo no olho não era maquiagem, foi porrada mesmo. Em retribuição à sua entrada deselegante, já saí cagando na cabeça dele. Nem dez horas da manhã e já era a segunda.
- Vem cá ô alicate, tu é besta mesmo ou tá só se fazendo? Tu não sabe não que o processo que começa contigo sendo preso termina na Vara Criminal? Não sabe ler a placa? Advogado de família. De família! Te manda já daqui e vai apertar os colhões de um criminalista.
- Não doutor, não é esse o caso. Não foi por causa disso que eu lhe procurei.
- Ah não? Então tu conta essa história sempre? É pra quebrar o gelo?
- Bem doutor, tem relação com a história, mas não é por causa de processo criminal que eu estou aqui. É por causa do divórcio. Minha mulher pediu.
Minha cara de besta deve ter autorizado o cidadão a contar o resto da história, pois ele sentou, não sem antes me estender a mão, a qual prontamente recusei sem sequer examiná-la dessa vez. Apertar a mão desse aí? Eu fora.
Tem dias que a gente abre a porta do escritório e torce para ninguém entrar. Esse é o dia em que eles entram. São meus clientes, mas preferia que não fossem. Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria fazer outra coisa, mas não sei.
Antenor o nome dele, deveria ser Aparício, mas nem toda piada já vem pronta. Servidor da Secretaria Estadual da Fazenda, concursado aos vinte anos e chefe de seção desde os trinta, Antenor Graça Ramos, casado e sem filhos, levava uma vida estável até o dia em que completou quarenta e cinco anos de idade. Nesse dia passou o aniversário absorto em seus próprios pensamentos, uma tortura inimaginável. A esposa estranhou, mas não muito, a simpatia nunca fora a característica marcante daquele homem baixo e de bigodes ralos que teimava manter.
Na semana seguinte ele decidiu, levaria sua vida normal, mas não se privaria de nada que o mundo até então lhe sonegara. Trabalharia como sempre, seguiria pontual, reto e honesto. Porém, não reprimiria mais os desejos das mãos, das mãos que formigavam quando os olhos davam em uma bunda, umas coxas ou uns peitos. Ai, uns mamilos rosados. A partir daí, Antenor desandou a apalpar, amaciar, afofar, tatear, beliscar e principalmente, apertar.
Começou com a estagiária, um apertão nas costelas, desajeitado e inexperiente. Crica, 18 anos, nem deu bola. Achou graça do tio da repartição. Ele não, ele gostou e não parou mais.
Tudo ia bem. Os problemas eram conforme o esperado, e o prazer que o ato lhe dava compensava qualquer cara feia, safanão ou mesmo alguns tapas no rosto.
Revigorou-se. Até o sexo em casa melhorou, embora jamais apertasse Regina. Isso não era coisa para se fazer em casa.
Então o óbvio aconteceu. Antenor apertou o mamilo errado e a casa caiu. Foi preso em flagrante. O bafo foi forte, a dona dos mamilos que a ele se mostraram irresistíveis não estava no elevador da secretaria para visitar uma amiga, fazer uma consulta ou mesmo protocolar um documento. Antenor não sabia, mas Márcia era a noiva do chefe da equipe de apoio da Divisão do Trânsito de Mercadorias. A equipe de apoio nada mais era que o grupo de policiais militares que acompanhava os fiscais da chamada Turma Volante nas operações mais perigosas.
O chefe preferiu nada relatar ao Secretário ou ao superior imediato de Antenor, o que lhe foi até vantajoso quanto ao emprego e cargo de chefia. Porém, não abriu mão da fazer Antenor conhecer a salinha da guarda. Depois disso, foi conduzido discretamente, no próprio carro da repartição, ao plantão da polícia judiciária, sob a acusação de incurso no art. 213 do Código Penal.
O fato estaria rapidamente solucionado na polícia civil não fosse o diálogo travado com o delegado, conforme Antenor mesmo antecipou-se em narrar. Afinal as relações entre as polícias não indicam que o delegado agasalharia a forçada capitulação do brigadiano, apenas porque a vítima era a sua noiva. A desclassificação do fato para importunação ofensiva ao pudor ou para perturbação da tranqüilidade era certa.
- Tudo bem. Que tu és tarado eu já sei. O que eu não sei ainda é onde eu entro nessa história. Dá para fazer o favor de resumir o babado?
- Estou no ponto doutor. É aí que a coisa desandou.
Conforme ele mesmo havia dito, estava preparado e achava completamente naturais as reações físicas das vítimas e das pessoas a elas chegadas. Aceitava como preço justo os safanões na sala da guarda e os tabefes na delegacia. A merda se deu quando ainda durante a lavratura do flagrante, a fim de adiantar o serviço e, antes mesmo do término das negociações que se travavam para o ajuste e o arquivamento informal do inusitado qüiproquó, no intuito de fazer cumprir o disposto no art. 5º, inciso LXIII da Constituição, o escrivão de polícia teve a infeliz idéia de telefonar para a esposa do preso.
Regina não gostou nem um pouco de saber da narrativa detalhada que o servidor lhe passou dos fatos. Gostou menos ainda quando compareceu ao distrito policial e lhe foi reservada a cadeira ao lado de Marcinha, a vítima do bolinador, onde sentou contrariada para esperar a solução do caso. Será que essa moça nunca ouviu falar em sutiã? Recato nada tem a ver com a lei da gravidade e seus efeitos.
Durante a grave discussão que teve com Antenor quando chegaram em casa, embora reafirmasse que isso não seria a razão do rompimento, Regina bradou em três oportunidades que tais seios expostos assim sem pudor não podiam ser de mulher decente, e que se ele não gostava dos seios dela, porque então lhe negou os implantes que tanto pedia.
Pois bem, resolvida a questão criminal, cujo processo morreu na casca, restou a ação de divórcio, da qual Antenor já havia sido citado e que continha pedido indenizatório por danos morais e desconto em folha da pensão postulada no máximo jurisprudencialmente praticado.
- Somente o senhor pode me ajudar, Dr. Edmílson. Suas habilidades são essenciais nessa causa.
- Teu caso é médico. A habilidade que tu precisa é cirúrgica.  Só a amputação de ambas as mãos te salva. Passa teus dados para a Dona Nívea, assina com ela a procuração e o contrato de honorários. Ela vai te dizer que documentos tens de me trazer. Só mais uma coisa. Olha lá, hein? Se relar a mão naquela bunda eu te capo.
Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria saber fazer outra coisa, mas não sei.

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