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quarta-feira, 20 de junho de 2012

CONTO: VICENTE - Miguel Torga

(uma valiosa contribuição do amigo Paulo Bergman)


 Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava:- a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
    Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.
    A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.
    Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:
    - Noé, onde está o meu servo Vicente?
    Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.
    Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.
    Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
    - Deve andar por aí...Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...
    Nada.
    - Vicente!...Ninguém o viu? Procurem-no!
    Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
    - Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?
    Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
    - Vicente fugiu...
    - Fugiu? Fugiu como?
    - Fugiu...Voou...
    Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.
    Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.
    Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.
    - Noé, onde está o meu servo Vicente?
    Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
    - Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...
    - Noé!...Noé!...
    E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.
    Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.
    Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?
    Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?
    Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.
    Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.
    Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte... Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.
    Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra...Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
    Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
    Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.
    Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.
    Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.
    Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu!" E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.
    Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção.
Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
    Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
    Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
    Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.
    Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

terça-feira, 17 de abril de 2012

CONTO: A TERRA QUE NOS DERAM - Juan Rulfo


Depois de caminhar tantas horas sem encontrar nem uma sombra de árvore, nem uma raiz de nada, ouve-se o ladrar dos cachorros.

A gente às vezes chegava a pensar, no meio deste caminho sem margens, que nada existiria depois; que não se poderia encontrar nada, ao final desta planura rajada de gretas e de arroios secos. Mas sim, existe algo. Há um povoado. Ouve-se o ladrar dos cachorros e sente-se no ar o cheiro da fumaça, e se saboreia esse perfume das pessoas como se fora uma esperança.

Mas o povoado está ainda muito lá adiante. É o vento que o aproxima.

Estamos caminhando desde o amanhecer. Agorinha é por volta das quatro da tarde. Alguém se vira para o céu, estira os olhos até onde está dependurado o sol e diz:

— São mais ou menos as quatro da tarde.

Esse alguém é Militão. Junto com ele, vamos Faustino, Estevão e eu. Somos quatro. Eu nos conto: dois adiante, outros dois atrás. Olho mais atrás e não vejo ninguém. Então me digo: "Somos quatro". Não faz muito, lá pelas onze, éramos vinte e tantos, mas aos pouquinhos foram se dispersando até não restar nada mais que este punhado que somos nós.

Faustino diz:

— É capaz que chova.

Todos levantamos a cara e miramos uma nuvem negra e pesada que passa por cima de nossas cabeças. E pensamos "É capaz, sim".

Não dizemos o que pensamos. Já faz tempo que se acabou nossa vontade de falar. Acabou-se com o calor. Qualquer um conversaria muito à vontade em outra parte, mas aqui dá trabalho. A gente conversa aqui e as palavras se esquentam na boca com o calor de fora, e ressecam a língua da gente até que acabam com o fôlego. As coisas aqui são assim. Por isso ninguém está para conversas.

Cai uma gota d'água, grande, gorda, fazendo um furo na terra e deixando uma pasta como de uma cusparada. Cai só ela. Esperamos que continuem caindo outras e as buscamos com os olhos. Mas não há mais nenhuma. Não chove. Agora, se a gente olha o céu, vê a nuvem escura correndo lá longe, a toda pressa. O vento que vem do povoado se encosta nela, empurrando-a contra as sombras azuis dos morros. E a gota caída por engano, esta a terra come e desaparece com ela em sua sede.

Quem diabos faria este llano tão grande? Para que serve, hein?

Voltamos a caminhar, havíamos parado para ver chover. Não choveu. Agora tornamos a caminhar. E a mim me ocorre que temos caminhado mais do que temos andado. Ocorre-me isto. Tivesse chovido talvez me ocorressem outras coisas. Afinal eu sei que, desde que eu era garoto, nunca vi chover sobre o llano o que se chama chover.

Não, o llano não é coisa que sirva. Não há coelhos, nem pássaros. Não há nada. A não ser uns quantos arbustos enfezados e uma que outra manchinha de carrapicho com as folhas enroscadas, a não ser isso não há nada.

E por aqui nos vamos nós. Os quatro a pé. Antes andávamos a cavalo e trazíamos uma carabina terçada. Agora não trazemos nem sequer a carabina.

Eu sempre achei que fizeram bem nisso de nos tirar a carabina. Por essas bandas acaba sendo perigoso andar armado. Matam o cara sem avisar, se o vêem todo o tempo com "a 30" amarrada às correias.

Mas os cavalos são outro assunto. Se viéssemos a cavalo já teríamos provado a água verde do rio e passeado nossos estômagos pelas ruas do povoado para que a comida baixasse. Já teríamos feito isso, caso tivéssemos todos aqueles cavalos que tínhamos. Mas também nos tiraram os cavalos junto com a carabina.

Viro-me para todos os lados e contemplo o llano. Tanta e tamanha terra para nada. Os olhos do sujeito escorregam ao não encontrar coisa alguma que os detenha. Só umas quantas lagartixas saem a assomar a cabeça por cima de seus buracos e logo que sentem a chicotada do sol correm a esconder-se na sombrinha de uma pedra. Mas nós, quando tivermos de trabalhar aqui, que faremos para nos refrescar do sol, hein? Por que foi esta crosta dura como cimento que nos deram, para que a semeemos.

Nos disseram:

— Do povoado para cá é de vocês.

Nós perguntamos:

— O Llano?

— Sim, o llano, todo o Llano Grande.

Interrompemos o falador para dizer que o llano não queríamos. Que queríamos o que estava perto do rio. Do rio em diante, pelas várzeas, onde estão essas árvores chamadas casuarinas e a terra boa. Não este duro couro de vaca que se chama llano.

Mas não nos deixaram dizer nossas coisas. O delegado não tinha vindo para conversar conosco. Pôs os papéis em nossas mãos e nos disse:

- Não vão se assustar com tanta terra só para vocês.

- É que o llano, senhor delegado.

- São centenas e centenas de alqueires.

- Mas não há água. Nem ao menos para se fazer um bucho tem água.

- E o temporal? Ninguém disse que receberiam terras irrigadas. É só chover ali e o milho se levanta como se fosse esticado.

— Mas, senhor delegado, a terra está esgotada, dura. Não cremos que o arado se enterre nessa como pedreira que é a terra do llano. Seria preciso fazer buracos com o enxadão para semear a semente e nem assim é possível nascer alguma coisa; nem milho nem nada nascerá.

— Transmitam sua reclamação por escrito. E agora vão-se. É o latifúndio que devem atacar e não o governo que lhes dá a terra.

— Espere, senhor delegado. Nós não dissemos nada contra o centro. É tudo contra o llano. A gente nada pode contra o que não pode. Isso é que dissemos. Espere para que a gente explique. Veja, vamos começar por onde íamos...

Mas ele não quis nos ouvir.

Assim nos deram esta terra. E nesta chapa quente querem que semeemos as sementes de algo, para ver se algo brota daqui. Nem urubus. A gente os vê lá longe de quando em quando, muito alto, voando às corridas, tentando sair o mais depressa possível deste branco torrão endurecido, onde nada se move e por onde se caminha como recuando.

Militão diz:

— Esta é a terra que nos deram.

Faustino diz:

— O quê?

Eu não digo nada. Eu penso: "Militão não tem a cabeça no lugar. De certo é o calor que o faz falar assim. O calor que traspassou o chapéu e esquentou-lhe a cabeça. E se não, por que diz o que diz? Que terra nos deram, Militão? Aqui não há nem o tiquinho de que necessitaria o vento para brincar de redemoinho.

Militão torna a dizer:

- Servirá para alguma coisa. Servirá nem que seja para correr éguas.

Que éguas? — pergunta-lhe Estevão.

Eu não havia reparado bem em Estevão. Agora que fala, observo-o. Veste um capote que lhe chega ao umbigo, e debaixo do capote estica a cabeça uma coisa parecida com uma galinha.

Sim, é uma galinha o que Estevão leva debaixo do capote. Vê-se os olhos dormidos dela e o bico aberto como se bocejasse. Eu lhe pergunto:

- Escuta, Tevão, de onde surrupiaste essa galinha?

— É a minha! — diz ele.

— Não a trazias antes. Onde a negociaste, hein?

— Não a negociei, é a galinha de meu galinheiro.

— Então a trouxeste como mantimento, não?

— Não, trago para cuidar. Minha casa ficou vazia e sem ninguém que lhe desse de comer, por isso a trouxe. Sempre que saio para longe, carrego-a.

— Escondida aí vai se afogar. É melhor deixá-la ao ar livre.

Ele a acomoda debaixo do braço e lhe sopra o ar quente de sua boca. Logo diz:

— Estamos chegando ao despenhadeiro.

Já não ouço o que Estevão continua dizendo. Pusemo-nos em fila para descer a barranca e ele vai um tanto adiante. Vê-se que agarrou a galinha pelos os pés e a sacode a cada passo, para não lhe bater a cabeça contra as pedras.

À medida que baixamos, a terra se faz boa. O pó sobe de nós como se fosse uma tropilha de mulas o que baixasse por ali, mas gostamos de nos encher de pó. Gostamos. Depois de vir pisando durante onze horas a dureza do llano, nos sentimos muito à vontade envoltos naquela coisa que brinca sobre nós e tem gosto de terra.

Por cima do rio, sobre as copas verde das casuarinas, voam bandos de galinholas verdes. Isso também é de que gostamos.

Agora os latidos dos cachorros se ouvem aqui, junto a nós, e é porque o vento que vem do povoado esbarra no barranco e o enche de todos os seus ruídos.

Estevão voltou a abraçar sua galinha quando nos aproximamos das primeiras casas. Desata-lhe os pés para desinchá-los e logo ele e sua galinha desaparecem detrás de uns cedros.

— Por aqui eu fico — nos diz Estevão.

Nós seguimos adiante, mais para dentro do povoado.

A terra que nos deram está lá em cima.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

terça-feira, 3 de abril de 2012

CONTO: O CIGARRO MOLHADO - Mauro Santayana

A súbita, ou insistente, lembrança de coisas ínfimas, costuma ser a chave da memória, para que revivamos momentos fortes da vida. Pode ser um cigarro que não se acendeu, por estar úmido, ou o esbarrão em qualquer desconhecido, na saída de metrô, em Roma ou Madri. No seu caso, foi o cigarro. Era madrugada em tempo de desesperado apego ao fumo, e  chegara ao hotel, com a roupa totalmente molhada pelo aguaceiro inesperado. Viera do restaurante, na cidade desconhecida, na mesma rua do hotel, mas a quatro quarteirões, o que serviria a uma boa caminhada.

Havia encontrado o restaurante, vietnamita, por acaso, e a curiosidade o levara a pedir meia dúzia de pratos exóticos, começando pelos invariáveis enrolados de ervas em papel de arroz. Mas a situação inusitada, a de entrar em restaurante oriental, passada a meia noite, e em país do norte da Europa, nada  diria, se não fosse o cigarro molhado pela chuva, enquanto, ainda jovem, corria o meio quilômetro para chegar ao hotel garni.

A vantagem desses pequenos hotéis, sem porteiros durante a noite, é que você recebe suas duas chaves, a da porta principal e a do quarto, e quase nunca vê alguém. Assim, pôde entrar, tirar a roupa — e procurar o cigarro, a fim de se repor da corrida. Para o fumante, até o cansaço é um apelo à nicotina.

Retirou o cigarro do maço, e viu que todos eles estavam encharcados, como também algumas cédulas que levava no bolso do outro lado do paletó. Achou que bastariam duas tragadas, e retirou de outro bolso o belo isqueiro de prata, um de seus poucos e pequenos luxos. A chama era forte, chama para acender charutos, e levou-a à ponta do cigarro. De nada adiantou. Só sentiu o aroma alterado do fumo, que o incitou ainda mais. Decidiu, então, vestir o terno de reserva e esperar, já embaixo, a chuva passar. Iria buscar um bar que estivesse aberto, a fim de comprar o maldito cigarro, sem o qual não poderia dormir. Assim fez. Havia mais ou menos meia hora que esperava, a chuva continuava e ele estava em estado de quase desespero, olhando pela fresta da porta, disposto a molhar-se outra vez — mas se lembrou de que, então, não teria o que vestir ao deixar o hotel na manhã seguinte.

Foi quando a porta se abriu para o desconhecido. Viu logo que estava bêbado, pelo cheiro e pela voz enrolada, com que disse boa noite. Respondeu, com timbre neutro, ao cumprimento; não gostava  de conversar com estranhos. Mas a situação era diferente e o desconhecido vinha protegido por uma sólida capa de gabardine: quem sabe teria um cigarro seco que pudesse aliviá-lo?

O outro  deu o cigarro, mas resolveu contar sua história, engasgadas de brandi as palavras. Convidou-o a seu quarto, mas disso ele soube esquivar-se, mostrando o pequeno salão ao lado, em que serviriam o café da manhã, onde poderiam falar-se. O recém-chegado despejou a desgraça: sua mulher o deixara, havia poucos dias, e, pelo que soubera, ela o trocara “por um encardido sul-americano”. Tratou de falar muito rápido, para que o desconhecido não lhe identificasse o sotaque, e agradeceu, pelo menos naquele momento, a circunstância de sua ascendência europeia, de pele e olhos claros; não podia ser visto, pelos  olhos magoados do interlocutor, como um mestiço schmutzig, como o nórdico se referira, com desdém, ao seu rival.

O que ele lhe poderia dizer? Pensou em ser franco: nada tinha a ver com aquilo. Que o outro procurasse um amigo velho, o pastor ou o padre, conforme sua crença e, no último caso, um psiquiatra que lhe receitasse uma pílula qualquer de esquecimento, ou do regozijo. Lembrou-se de um colega brasileiro, que aconselhava, em casos semelhantes, arranjar outra mulher imediatamente, nem que fosse por pouco tempo, mas mulata: ninguém melhor do que uma mulata para curar dor de cotovelo.

Pediu desculpas por não saber ajudá-lo, em questão tão pessoal e íntima. Se ele quisesse um conselho sobre o mercado de capitais, talvez lhe pudesse ser útil, mas não em assuntos como aquele. Ousou saber de que cidade era o homem triste e bêbado, e ele disse. Disfarçou o olhar, para não enfrentar o rosto do outro, e lhe perguntou o nome. Ao ouvi-lo, teve certo desassossego. Para ter certeza, jogou seu verde, ao aconselhá-lo a arranjar imediatamente uma mulata que o consolasse naquela circunstância.

Não soube se o outro sorriu, ou se fez uma careta, posto que mirava os sapatos ainda úmidos que lhe esfriavam os pés.

— Mas ela é mulata, meu caro, do Haiti, e de olhos azuis — disse o bêbado.

Concluiu que nada podia realmente fazer, deu boa noite, subiu. Fechou bem a porta do quarto, dando duas voltas na chave, arrumou a maleta, com a roupa molhada envolvida no exemplar de Die Welt daquele dia, e, como já pagara a diária, como é costume nesses hoteizinhos, em lugar de sair às seis, partiu logo que estiou. Ao passar pela porta não olhou para o pequeno salão de café, mas teve a certeza de que o outro ainda estava por lá, esparramado no sofá de espera. Tomou o primeiro trem de volta a Berlim, onde o aguardava uma mulata haitiana, de belos olhos azuis. E é claro, que depois daquilo, não esperou uma semana para trocar de país, levando a mulata para o seu novo destino.

(sugestão do Mig)

sexta-feira, 2 de março de 2012

CONTO: O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA - Clarice Lispector

Quando o homem atingiu a colina mais alto, os sinos tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.

Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura – sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia por que esperar mais.

E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso. Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.
O cachorro desconhecido estava à luz.

Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e começou a observar a paisagem.
Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o “outro”, quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto.

Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: “não era necessário enterrar no centro, eu também enterraria o outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo instante em pé”. Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente – no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja – tratava-se de tornar o fato ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu. Tratava-se de expor-se e de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento.
À ideia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé – o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão.

Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido:  “se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona”. Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade.

Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova.

Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a ideia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.

O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão era agora apenas uma aparência do terreno.

Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.

E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.

Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança.
“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”, pensou então com auxílio da saudade. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu – como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei”, refletiu curioso.

“Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade.
“Lembro-me de ti quando eras pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas, desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão”, lembrou-se o homem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar.”

“E como cheiravas as ruas!”, pensou o homem rindo um pouco, “na verdade não deixaste pedra por cheirar… Este era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? e o resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranquilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. Ah, sim, eras irredutível: eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz, mas pulaste um dia sobre a mesa e, entre os gritos felizes das crianças, agarraste a carne e, com uma ferocidade que não vem do que se come, me olhaste mudo e irredutível com a carne na boca. Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me ensinavas, e era isto também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes, sentado sobre as patas diante de mim, como me espiavas! Eu então olhava o teto, tossia, dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me espiavas. A quem irias contar? Finge – dizia-me eu –, finge depressa que és outro, dá a falsa entrevista, faz-lhe um afago, joga-lhe um osso – mas nada te distraía: tu me espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de horror, quando eras tu o inocente: que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro, e eriçado, atingido, erguer-te-ias até a porta ferido para sempre. Oh, eras todos os dias um cão que se podia abandonar. Podia-se escolher. Mas tu, confiante, abanavas o rabo.”

“Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa.”

“Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias – com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico – que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão? ‘Que não cabe em parte alguma’, disse Marta prática. ‘Que incomodará os passageiros’, explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido. A possibilidade de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer”, pensou o homem cada vez mais lúcido.

“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”, pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.”
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.

Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final. Este crime ninguém o condenava. Nem a Igreja. “Todos são meus cúmplices, José. Eu teria que bater de porta em porta e mendigar que me acusassem e me punissem: todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida. Este crime ninguém me condena. Nem tu, José, me condenarias. Pois bastaria, esta pessoa poderosa que sou, escolher de te chamar – e, do teu abandono nas ruas, num pulo me lamberias a face com alegria e perdão. Eu te daria a outra face a beijar.”
O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo.

Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém dá uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.
Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira; como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem – e como homem assumisse o seu crime – ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.

E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com movimentos simples – desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

CONTO: CASA TOMADA - Julio Cortazar

Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, uma sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.

Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.

Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.

— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.

Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.